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Opinião | Libertas quae sera tamen

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Foto do author Carlos Castelo

"Estávamos no auge da juventude e da criação artística".

(Patrik Andersson / PlaygroundAI)  

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Estávamos no auge da juventude e, por sorte, também da criação artística. Com vinte e poucos anos, realizávamos o sonho de tocar nossas próprias composições para um público exigente e refinado. Logicamente, viver na América Latina sempre exigia mais engajamento político do que em outras partes do mundo. Por isso, recheávamos nossas apresentações musicais com ácidas críticas ao regime ditatorial vigente. No dia da grande caminhada pelas eleições gerais e diretas, não podíamos deixar de marcar presença. Como sempre: quatro comparsas, quatro namoradas, todos ao centro de São Paulo pela democracia brasileira.

L. e S. foram os primeiros a chegar ao Largo São Francisco. M. e C. apareceram logo na esquina do Viaduto do Chá. P. e N., como sempre, atrasaram, mas não podiam deixar de comparecer. Faltavam agora somente J. e Y. Eram sempre tão pontuais em qualquer ocasião, começamos a desconfiar que algo de errado poderia ter ocorrido.

Enquanto aguardávamos, veio à minha lembrança o fato de J. ser, entre os membros da banda, o mais áspero e limitado, inclusive intelectualmente. Ele não compunha nada, no entanto, como executante de guitarra, possuía inegável maestria. Eu não estava certo se participar de uma passeata por direitos políticos era tão importante para J. como era para nós.

Os relógios seguiam girando para frente, as palavras de ordem começavam a ecoar pelas ruas e alamedas, o que antes era silêncio se transfigurara em turbilhão de cores e vozes. Entardecia, J. e Y. não apareciam. Em meados dos anos 1980 não existiam celulares, internet, WhatsApp, não havia como se comunicar com quem estava em trânsito.

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Resolvemos esperar por mais alguns instantes antes de irmos até o palanque onde estariam os grandes nomes do movimento histórico: políticos, artistas, formadores de opinião.

Dois minutos depois, como um espectro em plena luz do dia, surgiu Y. Vinha só. Cabelos lisos, corpo longilíneo, o vestido curto, solto ao vento como uma bandeira desfraldada. E o rosto, o que acontecera ao seu rosto? Dois grandes hematomas, um abaixo do olho esquerdo, outro bem acima do malar.

Y. sempre fora passiva. Com tudo e todos, mais ainda com J. Aceitava de bom grado todas as demandas do namorado, por mais constrangedoras que fossem. O grupo a olhou longamente. Y. enxugava as lágrimas com as costas da mão. Ninguém dizia palavra, somente acariciavam, aqui e ali, os seus machucados. 

- Vamos então? - disse Y., a voz ainda fraquejando.

Fomos, dessa vez em sete.

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No final do dia, havíamos participado de dois movimentos de libertação.

 

 

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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