"Ontem completei 86 anos. Meu dia já começou agitado."

Ontem completei 86 anos. Meu dia já começou agitado. Tomei um café forte -- o cardiologista diz que é um erro, mas, na minga idade, o que é errado? Botei meu terno preferido e fui direto para a coletiva de imprensa da minha nova turnê do Oiapoque ao Chuí. E o mais incrível de tudo: repertório totalmente novo. Isso mesmo, estou compondo músicas como se fosse um estudante de faculdade com violão emprestado. E nem venha me perguntar como arrumo ânimo. Meu nome é entusiasmo.
Depois da turnê nacional, embarco direto para a Europa: França, Alemanha, Itália. Eles me amam lá fora. Em seguida, Japão, porque nada é mais global do que um senhor brasileiro cantando MPB para uma plateia japonesa. Além disso, a paciência budista suporta qualquer coisa com resignação.
E, como se tudo isso não fosse suficiente, também estou lançando um romance de 800 páginas. O livro é uma narrativa metalinguística, cheia de neologismos, e aborda questões existenciais que talvez você só entenda quando estiver na minha idade.
Fora isso, atuo em três séries. Um drama, uma comédia e uma minissérie de ação. Na minha idade, ainda consigo dar uns chutes e uns socos coreografados, mesmo que o diretor precise incluir uma pausa estratégica para eu ajeitar as próteses do joelho e da tíbia.
Agora, sei que tem gente por aí que olha para mim e pergunta: "Por que esse sujeito não para?" Já tem milhões, casas de praia, residências na montanha, fazendas, haras. Mas não, desistir da carreira não é para mim. Se eu estacionar, desmonto. Literalmente. As engrenagens enferrujam, os parafusos soltam, e aí quem vai ter que lidar com esse caos todo é o plano de saúde. Além disso, há algo de muito errado na ideia de descansar. Cochilar pra quê? Estou com quase 90 anos, mas minha mente acha que tem 25. O corpo acha que tem 137, mas tudo é negociável.
E vamos falar a verdade: não há nada mais perigoso para um octogenário do que ficar sem fazer nada. Não vou cair nessa armadilha. Prefiro um palco, uma câmera, ou até um estúdio de gravação com acústica duvidosa. Menos ficar deitado o dia todo numa rede. Nem todos são Caymmi.
E digo mais: lucidez é para os fracos. Eu tenho orgulho é de ser um monumento ao delírio e à megalomania, e como todo monumento deteriorado pelo tempo, só resta fazer pilhéria da própria decadência. No fim, rir é o melhor remédio, especialmente quando se perde a noção do ridículo.
Assim, vou seguindo adiante. Amanhã cedinho, tenho ensaio para a turnê, um almoço no Rio com a editora italiana, e, à tarde, gravo cenas de krav magá para a série.
A arte imita a vida e, enquanto houver existência, estarei na frente dos holofotes. Meu epitáfio, inclusive, já está até pronto: "Morreu, mas foi em horário nobre."