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Opinião | Os palhaços e o circo

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Foto do author Carlos Castelo
Atualização:

"Ridi Pagliaccio, sul tuo amore infranto" (Ruggero Leoncavallo)

(Openverse)  

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A epidemia já caminhava para o segundo ano. Permaneciam severas as medidas de segurança. A população devia ficar confinada, só saindo em circunstâncias extremas. Era o caso de Socorro. Precisava ir da Zona Oeste até a Zona Norte da cidade. A mãe, idosa, estava com crise de angina, necessitava tomar um medicamento urgente. Socorro ainda teria que passar num posto de Saúde para apanhar o remédio.

Largou o filho com a irmã mais nova, se despedindo dos dois como se fosse à uma guerra. Não deixava de ser. As informações que ouvira eram desalentadoras. Ao tomar contato com os palhaços, em segundos, as pessoas começavam a rir, rir, rir. Não se sabia o que eles emitiam - gás hilariante, talvez -, mas logo as vítimas podiam infartar, ter um AVC e até literalmente explodir de tanto gargalhar.

A mãe de Socorro teve um brevíssimo contato com um palhaço. Como a maioria, ele estava trajado de verde e amarelo, e se escondia atrás dos portões de um quartel. 

Dona Eli voltava da vendinha de verduras. A estrambótica criatura se aproximou e promoveu uma careta. A senhora teve um frouxo de riso. A salvação foi o japonês da loja lhe enfiar uma sacola plástica na cabeça e puxá-la para dentro do estabelecimento. Mesmo assim, a proximidade se transformou em dores insuportáveis no peito.

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Não se podia, de modo algum, abrir a guarda. No entanto, Socorro não tinha alternativa. Na falta de transporte público, proibido no lockdown, pegou a bicicleta e partiu rumo à farmácia popular.

Nas ruas, como numa distopia orwelliana, não havia vivalma. Socorro era ágil. Entrou na ciclovia e logo estava na Marginal. Tudo ia muito bem até surgirem as primeiras vítimas. O que restara do corpo de dois jovens, e de uma senhora, tinha rebentando de tanto rir. Era compreensível: Socorro acabara de passar diante do Colégio Militar, na Alfredo Pujol. Os palhaços não deviam estar longe.

Rodou por mais alguns quarteirões. Ao dobrar na Ezequiel Freire deu com a cena: um grupo de palhaços queimando pneus no meio da rua. Freou. Eles felizmente não a viram. Foi retornando à avenida, procurando não cometer nenhum deslize, nenhum ruído.

Aqueles seres diabólicos, todavia, tinham o faro apurado. O mais velho do bando notou algo diferente no ar e foi na direção da ciclista. Seus asseclas o acompanharam. A 100 metros dali encurralaram Socorro numa viela. 

Repentinamente, antes mesmo do palhaço-chefe promover a sua pilhéria, Socorro mandou-lhes uma adivinha, em alto e bom som:

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- Quem nasceu primeiro, o palhaço ou o circo?

As aberrações verde-amarelas, conhecidas por sua ignorância, sem saber o quê responder, tiveram uma crise de riso. Foram, um a um, detonando como balões de gás. 

Momentos depois, ainda trêmula, Socorro subiu na bike. Antes de partir, olhou o monturo de saltimbancos, e partiu falando sozinha:

- O circo veio primeiro, idiotas. Como é muito antigo foi criando personagens diferentes: bobos, arlequins, bufões, polichinelos. Até chegar em vocês, palhaços golpistas.

 

Opinião por Carlos Castelo

Carlos Castelo. Cronista, compositor e frasista. É ainda sócio fundador do grupo de humor Língua de Trapo.

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