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Nascida para cantar

A cantora lírica Cèline Imbert completa 20 anos de carreira com lançamento de CD, ópera e outros projetos

Por Fabiana Caso
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O nome: Cèline Imbert. A residência: os Champs-Elysées paulistanos, num amplo apartamento cercado por prédios com elementos art nouveau. O ofício: cantora lírica. Toda essa aura francesa já vem do berço. Sua mãe, daquele país, preferiu que ela fosse alfabetizada primeiro no idioma europeu. Ao longo da sua estrada, a soprano tornou-se perita em transitar entre diferentes universos. Ela foi psicóloga e professora do primário antes de ser cantora lírica, dando uma virada na própria carreira após os 30 anos. E, para espanto dos puristas, cantou muita MPB e rock antes de aprender a técnica erudita. No momento, ela comemora 20 anos da bem-sucedida atuação nos palcos operísticos. Com o grupo Percorso Ensemble, canta no recém-lançado CD Berio (Sesc SP), nome do compositor italiano que criou arranjos para orquestra sobre canções populares européias - fusion bem ao gosto da soprano e mezzosoprano. A gravação inclui ainda interpretações para temas de Arrigo Barnabé e Eduardo Guimarães Álvares. Os paulistanos poderão vê-la em ação em breve na ópera monólogo A Voz Humana, de Poulenc, com a Banda Sinfônica do Estado de São Paulo, em cartaz a partir de setembro no Teatro São Pedro. Incluindo Berio, são seis discos gravados no seu currículo e 28 óperas. Cèline discorda de quem diz que não há belas vozes no Brasil. "O País mudou muito: hoje existe um mercado de trabalho, músicos nacionais atuantes e ótimos cantores novos. Não há uma cultura de música erudita por aqui, mas isso deveria ser incentivado. Nas óperas a preços populares em que cantei, vi as casas cheias e as pessoas se emocionando." O sentimento de bem-estar com a música ela acalenta desde a infância. Apesar de paulistana, aos 7 anos se mudou com a família para Cruzeiro, interior de São Paulo. A música era parte essencial da sua educação. Ela e os dois irmãos cresceram em meio aos alto-falantes do rádio e de uma vitrola para três LPs, na qual soavam de Edith Piaf a Elizeth Cardoso, passando por Celly Campello e a Jovem Guarda, o cravo bem temperado de Bach, Demônios da Garoa e muita bossa nova. "Víamos juntos todos os festivais na TV e vibrávamos." O gene da música estava na avó materna (Cèline), que cantava árias de ópera completas. A avó paterna também cantava e o avô paterno, pianista, escreveu livros sobre o tema. Uma de suas tias era assistente da pianista Madalena Tagliaferro, e foi com essa parente que Cèline aprendeu piano, desde os 5 anos. Sempre cantou em corais, mas nem pensava em se profissionalizar. Prestou vestibular e cursou o antigo curso Normal (para ser professora) e universidade de Psicologia, na vizinha cidade de Lorena. Ela morou em um pensionato de freiras em Lorena, com garotas de todo o Brasil. Lá aprendeu a tocar violão e montou um trio com as amigas: fazia arranjos vocais a três vozes. Depois de formada, veio morar na capital paulista. Logo entrou para o coral regido por Walter Lourenção. Mudou para o Coral Lírico do Teatro Municipal e, depois, para o Coral Luther King. EXPEDIÇÃO NA ÁFRICA Na época, final dos anos 70, a música mesclou-se ao amor: Cèline começou a namorar o regente do Luther King. Com ele, viveu por três anos em Maputo, capital de Moçambique, na África. Decretada a Revolução Socialista, o casal foi trabalhar naquele país que tinha 90% de analfabetos: ele como musicólogo e ela como psicóloga, criando atividades educativas junto às diretoras de creches do país inteiro. Com o companheiro, empreendeu expedições colhendo e registrando as formas musicais típicas de Moçambique para um levantamento completo. Céline conta: - Lá, a música faz parte da vida. A comida era controlada e tinha fila para tudo. Mas não ficavam só esperando: aproveitavam para cantar, a quatro vozes. Uma vez, vi homens na rua trabalhando, tinham de puxar cabos muito pesados. Eles cantavam para trazer essa força física à tona. As mulheres são imensas, mas sensualíssimas dançando com aqueles vestidos e cangas coloridas amarradas. É uma alegria... as vozes negras são profundas, aveludadas, metálicas, redondas. Passados três anos, ela voltou para São Paulo, porém sem o marido. Conseguiu um emprego de professora primária e retornou ao Coral Luther King - o novo regente a incentivou na carreira musical. Pela primeira vez, ela atuou em uma peça no papel principal, e apesar da curtíssima temporada, continuou cantando com a banda da peça. Passou a cantar com eles em barzinhos do Bexiga, principalmente no Café Piu Piu, com repertório que incluía Beatles, Elis Regina e Rita Lee, entre outros medalhões do rock-pop-MPB. No início dos anos 80, atendeu aos apelos do regente do coral, que lhe dizia para estudar canto lírico. Começou, então, as aulas com Leila Farah. Bastaram dois anos para que colhesse um sólido resultado: foi a vencedora, como cantora, do Prêmio Eldorado de Música, de 1985. Daí para frente, a carreira decolou. Em 1987, com a estréia da ópera Carmen, de Georges Bizet, na capital carioca, tornou-se nacionalmente conhecida. Depois, atuou em óperas nos Estados Unidos. Foi o vértice da virada: abraçou a carreira musical e deixou o emprego de professora - apesar de adorar ensinar os pequenos. PROJETOS E COTIDIANO Hoje, entre as gravações de CDs e as apresentações freqüentes, ela está concentrada num projeto especialíssimo. Vai gravar canções de Milton Nascimento arranjadas e produzidas por César Camargo Mariano: entra em estúdio ainda neste ano. A soprano conta, orgulhosa, que ele já foi até ao seu apartamento para tratarem do projeto. Eco da admiração por Elis Regina? "Ela foi uma escola para mim, como artista e ser humano. Dona Leila me ensinou a técnica, mas foi Elis quem me deu a emoção de cantar. Ela é minha musa inspiradora", suspira, emendando elogios à Cesar Camargo Mariano. "Estou vivendo a época mais feliz de minha vida, realizando sonhos que acalentei por muito tempo." Cèline conta com satisfação que um de seus programas favoritos hoje é reunir amigos no apartamento e cozinhar para eles. "Hoje tenho mais paz de espírito para fazer esse tipo de coisa", fala. Quando tem tempo, gosta de pegar um cineminha, mas só assiste a filmes que exaltem o tal espírito. "Não vejo nada com violência, gosto de histórias bonitas, que me façam acreditar na vida", conta ela, que está fazendo uma coleção de DVDs com títulos como Elsa e Fred. E também freqüenta concertos, é claro, para ver os colegas em alguns de seus palcos preferidos como os do Teatro Municipal, Teatro São Pedro e Cultura Artística. Depois do primeiro marido que deixou na África, casou-se mais duas vezes. Mas conta que é dificílimo conciliar a carreira e a vida amorosa, principalmente pelo ciúme que vem na esteira do papel de musa lírica. Hoje, conta,tem um relacionamento, "com uma pessoa rara". Gosta de ouvir em casa música de câmara, a cantora Leila Pinheiro e Milton Nascimento. "Prefiro músicas que tragam introspecção." Para a foto desta reportagem, nada de um retrato cênico, dramático. Preferiu posar como cidadã que trafega por todos esses mundos. No entanto, ela comenta: - O meu tipo de voz não me permite fazer papéis cômicos, sou soprano dramática e sempre meus personagens representam um punhal entrando no peito. A ópera é meu momento de catarse, de esvaziamento total de pensamentos. Exige muita concentração, detalhes de raciocínio e da emoção. É o momento em que me sinto inteira e percebo a minha divindade.

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