Bem, depois de aproximadamente setenta e sete dias, acabou ENFIM o mês de janeiro.
Foi um mês muito estranho. Aliás, estes têm sido tempos estranhos, não? Bem estranhos.
Aqui em casa, trocamos várias vezes por dia olhares de incredulidade.
-- Não acredito nisso.
É que a gente, jornalista de formação, não perdeu ainda o hábito de ler, ouvir, ver notícias o tempo todo.
Ontem mesmo, quando li sobre o insólito discurso em que o presidente dos Estados Unidos associou um acidente aéreo em Washington a "políticas de diversidade" na contratação de pessoal para o controle aéreo, houve um desses momentos "não acredito nisso".
Entendo que ele está instrumentalizando a tragédia para dar corpo à sua única bandeira tristemente popular, a de infernizar imigrantes, mas mesmo aceitando o jogo da realpolitik aquilo me pareceu bizarro demais.
-- Ele está basicamente dizendo que o acidente é culpa da diversidade, ou seja, minorias, latinos como nós, não somos inteligentes o suficiente para trabalhar na aviação.
Aquilo me deu uma sensação difícil de traduzir em palavra. Uma sensação de que a realidade não é real, de que aquilo poderia ter saído da boca de um personagem "politicamente incorreto" de sitcom ou de um bandidinho de filme B, um vilãozinho mequetrefe que destila clichês e revela motivações tão simplórias quanto "dominar o mundo, muahahahaha".
Bem, talvez estejamos em tempos de vilões simplórios, que fazem porque querem e podem, com direito a risadas malignas, planos secretos explicitamente revelados e saudações nazi.
E assim a realidade vai se confundindo com a ficção. Ou melhor, o jogos de simulação de realidade vão se sobrepondo à sua própria matéria-prima.
Tenho tido essa sensação com mais frequência do que gostaria de admitir. Não é mais por causa das pequenas confusões do dia a dia, dos déjà vus, dos sonhos em que sonho sonhar, da arte surrealista, do noticiário de acontecimentos excêntricos, como microondas que são confundidos com sinais de vida extraterrestre, que questiono o que é real. É por causa das coisas mais sérias, mesmo: os políticos, a guerra, a economia, as marchas que fazemos contra nós mesmos, histéricos e furiosos.
-- Isso não pode ser real.
Da caverna ao blockbuster
Mas eu não esperava terminar aqui, desmentindo notícias falsas (o Brasil é governado por clones do presidente Lula, Pabllo Vittar estampará notas de R$ 50, a Terra é plana e habitada por dinossauros vegetarianos etc. etc.) ao mesmo tempo em que interrogo notícias reais: Trump venceu de novo, Bolsonaro mandou um e daí durante a pandemia, cidadãos pacatos apoiam extremistas perigosos por toda a parte, o massacre na Palestina já dura mais de um ano etc. etc.
Já faz muito tempo (lá por 380 a.C.) que Platão propôs o famoso Mito da Caverna. Não é preciso explicar muito, acho que todo nobre leitor de O Lento Alento conhece a história: prisioneiros acorrentados desde o nascimento olham para as sombras projetadas na parede e confundem aquilo com a realidade.

Quando um dos acorrentados consegue escapar, descobre o mundo fora da caverna, cheio de luz e substância -- as formas verdadeiras. Mas, ao retornar para contar a novidade aos demais, não é celebrado. É ridicularizado, hostilizado, talvez até apedrejado.
Afinal, o homens da caverna se afeiçoaram às sombras.
Avancemos para 1999, quando as irmãs Wachowski lançam Matrix, filme que bebe diretamente da fonte de Platão e atualiza aquela provocação para a era digital, misturando o mito clássico a ideias pós-modernas.
Com Matrix, parecia que havíamos ganhado um Mito da Caverna apropriado para a nossa época, uma caverna high-tech, digital.
No primeiro filme acompanhamos Thomas A. Anderson, um programador de computadores que leva uma vida dupla como o hacker Neo. Ele sente que há algo de errado com o mundo, uma desconfiança sutil que o persegue como uma coceira que não consegue ignorar. Essa inquietação o leva a Morpheus -- uma espécie de Sócrates moderno -- que lhe oferece uma escolha simbólica: a pílula azul, que o manteria na ilusão confortável de sua rotina, ou a pílula vermelha, que revelaria a verdade brutal sobre a realidade.
Ele escolhe a pílula vermelha, é claro, e desperta para um mundo devastado, onde os humanos são mantidos inconscientes, presos em cápsulas e usados como baterias por máquinas inteligentes. O mundo que conhecia -- o mundo da Matrix -- não passava de uma simulação sofisticada, construída para manter a humanidade subjugada sem que sequer soubesse disso.
A trama, então, desenrola-se como uma jornada filosófica e existencial, balizada por espetaculares golpes de kung fu e efeitos especiais impressionantes.
O que é real? O que define nossa percepção do mundo?

Matrix ecoa Platão ao mostrar que, muitas vezes, preferimos as sombras na parede da caverna à luz incômoda da verdade. Ou seja, melhor ficar dentro da simulação de computador, numa vidinha medíocre, mas confortável, do que encarar a real: somos apenas baterias descartáveis, bucha de sedentas engrenagens.
A Matrix não é apenas uma prisão; é um simulacro -- um mundo mais real do que o real, justamente porque foi desenhado para ser irresistível.
O impacto de Matrix na cultura foi tremendo, imensurável. Virou um desses filmes que marcam época -- ou melhor, épocas. Até hoje sentimos reverberações de ideias e provocações das irmãs Wachowski, às vezes da forma mais estúpida e nefasta, como o recente crescimento dos movimentos "red pill" prova.
A "red pill", a pílula vermelha, que em Matrix simboliza a busca pela verdade, foi na última década sequestrada por comunidades online ligadas a ideologias misóginas, reacionárias e conspiratórias. Os autodenominados "red pills" dizem ter acordado para a "realidade oculta" sobre como funcionam as relações de gênero e a sociedade em si, defendendo ideias machistas e retrógradas. A ironia seria engraçada se não fosse perigosa: se em Matrix a pílula vermelha prometia a fuga de um sistema de controle baseado em ilusões, os red pills da vida real estão aprisionados em uma grande matrix idiotizada, na forma de bolhas de desinformação e ressentimento. Eles acreditam estar despertos, mas estão presos em algumas das ideologias mais manjadas e nefastas da história.
Volto rapidamente ao filme. Após Neo tomar a pílula vermelha e conhecer enfim a realidade do mundo pós-apocalíptico em que vive, o socrático e circunspecto Morpheusprovoca:
-- O que é real? Como você define "real"? Se você está falando sobre o que pode sentir, cheirar, saborear e ver, então "real" é simplesmente sinais elétricos interpretados pelo seu cérebro.
E completa, num tom dramático:
-- Bem-vindo ao deserto do real.
PS. Leia mais sobre cinema e realidade(s) neste link.