Sempre tive muita sorte. Perambulei muito de transporte público em São Paulo ao longo da vida e nunca me aconteceu absolutamente nada. Cruzo regiões perigosas da cidade sozinha quase todo dia, a noite, de carro e também nunca tive nenhum aborrecimento.
Mas ninguém passa ileso a vida toda, né? Menos de dois meses depois de ter comprado um Iphone, parcelado, calculado, um pouco sofrido, levaram-no embora. Como a vida é muito bacana comigo, na verdade não fui roubada, mas furtada, sem nenhuma violência ou maiores sustos.
Um pequeno detalhe: foi em Milão, num restaurante legal, enquanto me deliciava com comidinhas cheias de azeite e tomate fresco. A ironia já começa aí: uma paulistana que nunca sofreu violência no Brasil, furtada na Europa.
Mas eu queria ter sido furtada por um homem com cara de mau, de quem pudesse ficar com muita raiva e desejar que ele se lascasse na próxima esquina. Não foi bem isso que aconteceu.
Fui furtada por duas meninas de no máximo 11 anos, com carinhas de ciganas, que vem da miséria do leste europeu, exatamente de onde veio minha família Manus, fugindo da pobreza e da guerra. Eu tive essa sorte, elas não. Elas se aproximaram da mesa pedindo dinheiro e pegaram meu celular que estava lá, dando sopa, em cima da mesa, enquanto cortávamos uma fatia de pizza para lhes dar.
Foram embora e quando me dei conta era tarde demais, o Iphone com a capa cor de rosa cafona já tinha ido embora. A dona do restaurante queria que eu fosse à delegacia. Foi quando, naquele misto de raiva e tristeza, pensei: e se acharem as meninas? Eu posso ter o Iphone de volta, mas o que vão fazer com elas? Pensava nelas e só conseguia imaginar minha sobrinha, que tem a mesma idade.
Minha vontade era de pegá-las pelo braço, com a cara mais severa que consigo fazer, e ter com elas a mesma conversa dura que teria com a minha sobrinha se ela voltasse da escola com um estojo que não fosse dela. Não queria que policiais armados, truculentos e grandalhões as procurassem nas ruas naquela tarde cinzenta. Não fui à delegacia, não sei se por medo, compaixão, hipocrisia ou princípios.
Pois é.
Estamos nesse mundo no qual crianças da mesma idade vivem em dois lados diferentes: as que jogam joguinhos no nosso Iphone e as que são treinadas para roubar Iphones. É um mundo muito doente. É um sistema todo burro, todo errado e escancaradamente injusto e falido.
Não vim fazer campanha contra a redução da maioridade penal. Eu, como advogada, professora e ser humano, sou super contra a redução. Mas não tenho saco nem saúde para persuadir as pessoas. Somos todos adultos, com acesso à informação e alguma lógica na cabeça. Cada um que pense por si. (peço que também me poupem de tentar me convencer do contrário, minha opinião é fruto de 10 anos de estudo)
Só vim refletir sobre essa dualidade, sobre esse vergonhoso paradoxo da desigualdade social, com o qual asquerosamente nos habituamos a viver. Vim porque é fácil imaginar o menor infrator como um mini homem sem caráter. Mas a regra não é essa. A regra é eles serem como essas meninas: vítimas de um sistema burro. De uma vida miserável. De um Estado ausente. Da ausência de cuidado e da ausência de parâmetros.
Só vim me perguntar até quando as pessoas vão clamar por melhor política de segurança e não por melhor política social. Por mais rigor e punição e não por mais educação e inclusão. Até quando as pessoas vão confundir justiça com vingança e vão querer transformar o direito em canhões voltados ao que lhes incomoda?
As meninas roubaram meu Iphone. Mas muito antes disso, a infância e o futuro delas foram roubados pelo sistema podre com o qual diariamente compactuamos. No fim das contas, acho que não perdi tanto assim. Já comprei outro, ainda tô pagando, mas ele tá aqui do lado, seguro, branquinho, com uma nova capinha colorida bem brega. Já as meninas... Bom, elas devem continuar por aí, inseguras, sujas de rua, sem nada de colorido, engolidas pelo mundo do crime, aguardando que alguém lhes estenda uma mão. Ou que lhes seja apontada uma arma.
O que é mais provável?
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.