Os prejuízos emocionais e educacionais que os nossos filhos tiveram nos últimos dois anos da pandemia são inúmeros e já conversamos sobre isso à exaustão, inclusive aqui neste blog. Com a vacinação disponível para as maiores de cinco anos de idade, as crianças e os adolescentes voltaram a ocupar todos os espaços compartilhados, não somente as escolas. Os acampamentos reabriram para os colégios e também para as temporadas de férias, e os jovens aos poucos voltam a ter a oportunidade de conviver com seus pares em outro contexto, longe das telas e bem perto da natureza.
Mas como está sendo esse retorno à convivência em grupo, tão essencial para as crianças e os adolescentes? "Eles chegam muito ansiosos, brigando muito e muito frustrados quando as coisas não acontecem do jeito que previam, estão sem recursos nesse sentido, sem essa capacidade de estar com o outro e negociar sem entrar em muito confronto", conta a doutora e mestre em Educação e psicopedagoga Patrícia Torralba, da pedagogia do Acampamento Replago, que fica em Leme, a 170km de São Paulo. Segundo Patrícia, além dessas dificuldades socioemocionais, as crianças têm precisado reaprender muitas coisas, entre elas, brincar. "Uma brincadeira na tela é uma coisa, eu tiro quando eu não gosto, eu apago, eu não gostei, vou embora, mas a brincadeira presencial tem que ser sustentada. Como eu entro? Como eu negocio? Quem vai ser o quê nessa brincadeira? Tem muitas negociações que são um aprendizado para vida", garante. Ela conversou com o Estadão e também com a Rádio Eldorado sobre as perdas que crianças e adolescentes enfrentaram devido à pandemia e sobre a importância de pais e educadores olharem para esses jovens com olhos mais amorosos.
Blog: Qual a importância de as crianças terem espaços seguros e autônomos, longe dos pais, para se desenvolverem e exercitar a autonomia?
Patrícia: As crianças precisam de espaços e a escola é o primeiro lugar de socialização, a grande entrada. E nessa entrada social, elas podem se desenvolver um pouco distantes desse olhar dos pais, que são ansiosos por todo envolvimento emocional têm com os filhos. Nesses espaços, as crianças vão estar com outros adultos que vão demandar deles coisas que nem sempre a família acredita que eles dão conta, às vezes a família até entra sem querer na sintonia do filho, se ele diz algo como "ai, eu não consigo fazer isso", muitas vezes não sustenta e diz "vai que você consegue sim". Então a escola faz muito, eu gosto até de pensar nela como se você tivesse uma cama elástica te apoiando e dizendo "olha, pode fazer os seus malabarismos, mas tem algo te segurando ali embaixo". Nesse cenário, existem também os acampamentos em que há degraus, se vai ganhando essa inserção e a criança também vai sendo apoiada.
Eu acho que cada vez mais existe um discurso de não frustrar as crianças, "não pode, ela vai se frustrar, não vai aguentar" e eu acho que a escola e o acampamento também são lugares onde a crianças vão fazer ensaios, lidar com frustrações e ver que outras pessoas podem ajudá-las, desde os colegas e até outros adultos que vão olhá-lo de outra maneira, e isso para o crescimento é fundamental - e já era antes da pandemia.
Blog: E como está sendo a volta dessas crianças a esses espaços ao ar livre?
Patrícia: Nessa retomada, algumas crianças têm precisado de muita ajuda, a gente está precisando saber acolher e perceber que vai precisar de mediação de adulto para saber entrar na brincadeira, porque uma brincadeira na tela é uma coisa, eu tiro quando eu não gosto, eu apago, eu não gostei, vou embora, mas a brincadeira presencial tem que ser sustentada. Como eu entro? Como eu negocio? Quem vai ser o quê nessa brincadeira? Tem muitas negociações que são um aprendizado para vida e essas crianças precisam reaprender a brincar. Porque eu sou da época que tinha uma rua e lá a gente aprendia muita coisa. Mas (esse brincar) hoje é na escola ou em locais onde têm adultos, educadores pensando sobre isso, então essa possibilidade de estar aqui num acampamento cuidado por educadores é muito importante.
Também não adianta colocar a criança em um ambiente lindo, maravilhoso, porque ela precisa aprender a usufruir. Ontem eu estava acompanhando um grupo que ia olhar a horta - os adolescentes entraram, havia várias árvores frutíferas e muitos não sabiam explorar, sentir o cheiro, os aromas. E aí uma menina veio andando e eu falei para ela, "o que é que você precisa?" e ela me disse "ah, de nada, eu vou fazer pão". Eles estavam numa atividade culinária e ela falou que não precisava de nada, mas eu falei "vem cá, você sabia que tem muitos temperos que dão um sabor diferente para o pão?" O olho dela abriu e eu segui "você já sentiu o cheiro, a textura desses temperos?" E aos poucos os pães foram ganhando vida, "vamos pôr cenoura", um outro menino pegou salsinha e eles foram explorando. Há crianças que não têm nem noção qual é a árvore que está na frente delas, o que é pegar um abacate, explorar. Então não adianta só colocar no lugar, eu sinto que precisa de adultos que os ajudem a se colocar nessa experiência, aí sim ela é transformadora, uma aprendizagem que muda o jeito de estar no mundo. Eu tenho certeza que essas crianças que começam a explorar dessa maneira não ficam mais indiferentes em outras situações.
Por que às vezes há crianças que olham para o a ambiente e dizem "ah, mas não tem o que fazer". São crianças que são o tempo todo 'animadas', sabe festa com animador dizendo "vai pra cá, é pra lá"? Aí elas chegam num lugar e não sabem explorar, "não tem o que fazer", dizem. Como não tem o que fazer? Nem sempre o brinquedo está pronto, é o graveto que vai virar brinquedo, são as pedrinhas, são outras coisas. A brincadeira aparece de situações muito inusitadas, eu tenho que imaginar, criar, negociar e eu vejo as crianças muitas vezes convidadas a fazer muitas coisas, mas onde elas não entram já entraram por ela. E aí elas não aguentam esse vazio, algo que é necessário ou até o silêncio do "o que é que eu vou fazer?" Aqui o brincar rola de outra maneira, não precisa de grandes objetos, precisa de criatividade, de estar com o outro, de inventar, rir à toa. Tem coisa mais gostosa do que ver uma situação inusitada e rir, rir com um amigo até esgotar? Então.
Blog: Muitas crianças já estavam distantes da natureza e da brincadeira livre antes da pandemia né, eu imagino que isso só se exacerbou. O que é que você ouviu dessas crianças que estão voltando para esse contato da natureza desse período que elas passaram apartadas muitas vezes até da pracinha perto de casa?
Patricia: Então as crianças chegaram com muitos medos e algumas mais do que outras porque as experiências são muito diferentes. Algumas se aproximaram da família, porque tinham uma situação mais favorável, foram para casa de campo, casa da praia e lá conviveram com outras crianças. Mas algumas não, elas ficaram em seus apartamentos e com adultos que muitas vezes tinham que trabalhar demais da conta. Eu não estou culpando ninguém, porque é assim que as coisas são, e a tela foi o que foi possível. Então para essas crianças falta uma aprendizagem que é corporal, física, que é saber brincar. Olha, como eu disse, foram vivências muito diferentes e eu acho que muitas crianças não conseguem verbalizar muitas vezes. A gente que está olhando vê muita coisa, primeiro tem um deslumbramento, mas tem que aprender a usufruir de novo, ficar menos ansioso e saber explorar. Há muita ansiedade, medo e ao mesmo tempo um grande desejo de ir para fora.
Blog: Os pais se preocupam muito com o 'tempo perdido' durante a pandemia. Como você vê isso?
Patrícia: Eu vejo uma preocupação legítima dos adultos, eu conversei muito com famílias preocupadas, "ah, mas ele ainda não sabe ler e escrever, ainda não sabe a conta de mais", achando que o filho está perdendo. Sim, está e isso a gente dá conta. Mas essa outra experiência, esse ciclo que a natureza oferece, essa observação mais delicada, mais sensível, essa precisa ser resgatada e com urgência, até para que a gente possa seguir aprendendo lidar com esse medo que está aparecendo de ser aluno. Então, o que eu acho que o que é mais urgente? O que é mais importante nesse momento? E eu tenho receio porque, como adultos a gente têm demandado demais dessas crianças no saber cognitivo. Já era assim antes, o que é importava? "Ah, sabe ler, saber escrever." Mas e se não sabe amarrar o sapato, não sabe arrumar uma cama, não sabe atravessar uma rua, não sabe brincar, não sabe negociar? Às vezes eu vejo que nessa sociedade é difícil perceber que isso é essência do humano e que o ser humano precisa ser desenvolvido em toda a sua capacidade.
Há uma preocupação tão grande com resultados à longa distância, "vai trabalhar no quê, vai ser o quê?" Eu sei que é complexo tudo isso, mas tem algo que é do desenvolvimento emocional, afetivo, corporal, que se não for feito agora é prejuízo, vai ser um adulto que não sabe trabalhar em equipe, sabe? Isso você já está acontecendo. Eu acho que nesse momento precisamos olhar bem para essas crianças e para esses jovens, o que é que eles perderam, como que a gente vai olhar para que eles se sintam fortalecidos para crescer totalmente. Eu vejo que esse é um momento bem delicado, que nós adultos precisamos cuidar.
Já antes desse período de isolamento eu me assustava porque nem todas as escolas dão conta de propiciar isso, já que muitas não acreditam que seja um conteúdo importante. Tem matemática, português, história, geografia mas algumas escolas esquecem que o desenvolvimento emocional e afetivo é fundante. Para eu aprender matemática eu tenho que estar em um ambiente afetivo onde eu possa mostrar o que eu não sei. Senão a criança vai aprender aos poucos a esconder o seu 'não saber' e isso para algumas vai ser muito prejudicial.
Blog: Eles perderam muito em relação a conteúdo escolar, isso os pais se preocupam fortemente, como você disse. Mas como eles têm chegado aí em relação às habilidades socioemocionais e também a essa questão de correr, de subir em árvore, de brincar? Porque às vezes, dependendo da faixa etária que essas crianças estão, elas nem tiveram muita oportunidade de fazer isso em dois anos de pandemia. Com é que você vê essas crianças que estão chegando aí depois desse tempo todo?
Patrícia: Eles chegam muito ansiosos, brigando muito e muito frustrados quando as coisas não acontecem do jeito que previam, estão sem recursos nesse sentido, sem essa capacidade de estar com o outro e negociar sem entrar em muito confronto. Então a briga aparece, há uma dificuldade em escutar, um desejo de só querer ser ouvido. Porque eu tenho o desejo de falar, mas eu também tenho que aprender a ouvir. Então há uma dificuldade de escuta e concentração, como se não tivesse musculatura pra isso, sabe? Então, é como se tivesse uma falta de musculatura social. Para conviver eu tenho que abrir mão de muitas coisas, mas só quando eu abro mão eu percebo que eu ganho muitas outras coisas. Então há uma tolerância pequena para chegar no que se ganha, só percebendo as perdas. E essa habilidade de correr, habilidade de subir nos objetos para algumas crianças é uma aprendizagem. E a gente precisa olhar para eles e não ficar assustado enquanto adulto, porque você olha para uma criança e acha que fisicamente elas parecem menores.
E há as coisas aparentemente pequenas, esses dias uma menina falou para uma monitora "ai, eu tô com frio". E aí a monitora falou "vamos ver o que é que a gente faz com esse frio? Olha aqui, eu tô agasalhada". Sabe, é pequeno isso, mas é grande para essa criança, porque quando você está com o pai, com a mãe, muitas vezes eles não te deixam nem sentir o frio, a solução já tá dada, a mãe já está com o agasalho antes que você sinta o frio. É uma coisa simples, né? Mas precisa estar com educadores, porque senão vai ficar só com essa sensação muito ruim. Nós, os educadores, temos que estar nessa frente para estar acolhendo e falando, "vai que você consegue, olha que legal, você resolveu esse problema". A gente demanda deles muitos problemas que estão no papel, mas tem os problemas do dia a dia. O que eu faço no acampamento se eu esqueci meu tênis? O que eu faço? E aí você vê os adultos lá te ajudando, as próprias crianças dando solução.
Tem coisas que você nessa idade já tiraria mais de letra, mas é porque teve experiências. Então a gente tem que olhar pra eles e, eu digo, olhar sem se assustar, porque senão a gente entra numa sintonia de cobrar coisas, "nossa, mas você já deveria saber isso". Não vamos esquecer que eles passaram por dois anos de pandemia e a pandemia ainda não acabou. Eles tiveram contato com coisas complexas, muitas crianças que eram muito poupadas - e eu acho tem uma coisa de os adultos pouparem demais, não se fala de morte, não se fala de tristeza, não se tem frustração com nada. De repente você cai numa pandemia, ninguém tinha, nem os jovens tinham essa musculatura para lidar com a vida que é tão complexa. Eu brincava que eu me sentia o 'waze', recalculando a rota, você planeja, muda de rota e via que a morte está do lado da vida o tempo todo. E aí essas crianças, esses jovens, tiveram que lidar com algo muito complexo em uma sociedade em que só cabe ser feliz o tempo todo. Então imagina viver o que nós estamos vivendo e quando a gente acha que está tudo engrenando vem uma nova variante. O que é que a gente faz?
E a gente vive em uma sociedade que parece que se pode controlar tudo, ela te promete algo que não vai te entregar. E ao acampar a gente também vai falar assim, "olha, ele vai chegar aqui, vai frustrar muito, mas a gente vai dar conta". E ele dá. Porque talvez ele não vai cair no quarto que ele queria, talvez não apareça a brincadeira que ele queria. "Eu tô louco pra ir pra tirolesa" e aí começa a chover. Não vai pra tirolesa. E aí o que é que eu faço com isso? Eu vou ficar chorando ou eu vou descobrir uma outra coisa que eu posso fazer? E eu acho que isso pra eles é muito importante. Então, acho que nesse momento os adultos também precisam acreditar que eles dão conta das frustrações, que tem um primeiro choro mas, passado o choro, vai se encontrar as soluções, a porta fechou, mas abriu uma outra que eu nem estava vendo, e olha que legal. Essa experiência que antes da pandemia os adultos já estavam poupando.
Blog: Quando o acampamento fechou na pandemia, vocês começaram a receber as famílias que viajavam em 'bolhas', isoladas de outras famílias. O que elas disseram, quais foram as dores e os aprendizados desse período?
Patrícia: A gente teve um contato muito grande com as famílias que falavam assim, "mas por que é que o meu filho tem que viver isso (a pandemia) agora? Por que na alfabetização dele? Por que quando vai fazer 15 anos?" A gente não tem controle. A gente vai alfabetizar, mas vai ser de uma outra maneira. E vai ter festa, mas vai ser uma outra festa. Quando os adultos e as crianças se deram oportunidade de viver outra coisa, o que era possível viver, o vínculo foi muito forte. Muito forte. Vai ficar marcado historicamente outras formas de vínculo, porque justamente a tela que a gente acreditava que distanciava era o único canal de aproximação, e ela tinha que aproximar e pronto.
O que eu achei fantástico quando pensamos "vamos trazer para cá as famílias" foi que dessa porta fechada se descobriu uma outra porta - foi o ir para um lugar e estar com o filho, olha só que oportunidade que foi o de eu aprender a brincar com o meu filho, dele me ver brincando. Houve um aprendizado muito grande.
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