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Ser mãe é padecer na internet

Opinião | Longe da escola, crianças confinadas estão mais vulneráveis a sofrer violência sexual

Professor, agora distante, sempre foi capaz de notar mudanças no comportamento dos pequenos

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Foto do author Rita Lisauskas
Atualização:

 Foto: Banco de Imagem

O isolamento social imposto pela pandemia causada pelo coronavírus acaba deixando as crianças ainda mais vulneráveis a todos os tipos de violência, inclusive a sexual. Um relatório da organização não governamental World Vision, publicado mês passado, estimou que até 85 milhões de crianças e adolescentes entre 2 e 17 anos poderão ser vítimas de violência física, emocional e sexual nos próximos três meses em todo o planeta por conta do confinamento. E longe da escola perdem um grande aliado, o professor, que tem um papel importante na identificação e no combate a esse e de outros tipos de ataques à infância. Paula Ayub, psicóloga e voluntária da campanha "Eu me protejo",  afirma que o risco que as crianças correm nessa fase "é enorme" e também por isso é essencial que os pais estimulem os filhos a terem várias pessoas de confiança em seu círculo mais próximo de relações. "O que eu costumo sempre deixar claro é que os adultos de confiança não podem pedir segredo de nada e que isso tem que ser dito à criança. 'Se você tem um segredo com a mamãe tem que contar pro papai também', ou vice-versa. Permitir que a criança tenha segredo com um adulto só pode fazer com que ela se aprisione com o próprio agressor", explica. Ayub conversou com o blog sobre os perigos que as crianças enfrentam durante essa pandemia, principalmente agora que estão longe da escola.

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Blog: Qual o risco das crianças confinadas com suas famílias quando pensamos em pedofilia?

Paula: O risco é enorme. A função maior da família é a proteção. E se você está confinado com pessoas que teriam que te proteger, mas que são abusadoras e violentas, a criança não tem para onde ir. Até porque a violência sexual, dependendo da idade, causa sentimentos super antagônicos: dá prazer, dá culpa, dá medo, e isso afeta a criança como um todo. Então há um risco muito grande tanto dentro de casa quanto pela internet, porque hoje com essa pandemia a criança está quase o tempo todo exposta à internet e o que eu tenho observado é que não está havendo diálogo sobre o uso da rede com seus pais. Muitas famílias acreditam que conversar sobre a internet é dar limites e estipular os horários de uso. Mas ninguém sabe o que está acontecendo 'lá dentro' da internet e hoje a gente precisa estar alerta o tempo todo.

Blog: E qual era o papel do professor, essa pessoa de confiança da criança fora de casa, quando o assunto era alertar que esse menino ou menina estava sendo vítima de abuso ou de maus tratos?

Paula: O professor é aquela pessoa que conhece todas as crianças e que pode apontar quando algo está errado, 'opa, teve uma queda brusca de rendimento dessa criança, o que será que está acontecendo aqui?', é aquela pessoa que percebe quando a criança está mais calada e que vê e notifica qualquer mudança de comportamento. Além disso, algumas crianças veem nessa figura uma pessoa amiga, pra quem elas podem chegar e contar algo da sua vida. Na escola, ainda, há ainda as atividades de artes e a criança se expressa através do desenho, as pequenas muito mais do que a gente pode imaginar, é um jeito até que a gente tem de monitorar, de saber como as coisas estão acontecendo. Então o professor é um excelente observador do desenvolvimento da criança e é ele que muitas vezes chama a atenção da escola, dos profissionais, dos pais, de que alguma coisa não está andando muito bem ali.

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Blog: E eles não conseguem fazer isso da mesma forma agora com essas aulas online?

Paula: O que está acontecendo agora é que o professor está tão estressado quanto seus alunos, porque ele não foi educado para ser um youtuber, aliás, ele foi educado para não gostar dos youtubers, porque é para lá que as crianças vão para fugir das aulas. E isso está dificultando muito, porque ele não tem as ferramentas que obviamente tinha antes, mas ele pode, sim, criar alternativas muito positivas para se conectar com seus alunos. Uma coisa que eu sei que professores têm feito em algumas escolas é 'vamos todos jogar juntos numa plataforma x' e a sala toda vai jogar e lá tem chat e o professor pode ver como está a comunicação desses alunos, ou seja, tem muito recurso disponível ainda. Óbvio que não é fácil e que não vai suprir essa presença física, mas a gente tem recursos que nos possibilitam continuar tendo essa missão de observação. Mas os professores ainda não deram conta de aprender tudo isso, eles mal estão dando conta de gravar as aulas, o que consome um tempo muito grande que não têm. Então a gente está em um momento muito difícil.

 Foto: Banco de Imagem

Blog: E quais os alertas que a criança dá de que ela está sendo vítima de algum tipo de violência sexual?

Paula: Os mais comuns e frequentes são a mudança do rendimento escolar, aquela criança que teve uma queda drástica na escola, não está dormindo direito, ficou mais calada ou mais falante, mais ativa. Qualquer mudança muito brusca na criança é um sinal de alerta. E aí você pode se aproximar para entender, porque podem estar acontecendo várias coisas. Mas eu costumo sugerir: dê um lápis e um papel para a criança e ela vai te apontar um caminho. A conversa é importante, obviamente, perguntar o que está acontecendo, 'a gente reparou que você não está querendo fazer a lição', ir cercando essa criança com perguntas. Mas eu diria que a mudança brusca de comportamento é uma das coisas mais comuns, qualquer comportamento que fique muito fora daquele habitual. A gente tem pensar como se fosse uma virose: deu três dias e não passou alguma coisa tem, vamos olhar com outras lentes para ver o que está acontecendo com essa criança. Hoje em dia, em função da quarentena, e muitas famílias estão seguindo a quarentena, essas mudanças podem ficar muito confusas, porque o isolamento está gerando um estresse muito grande e muita mudança de comportamento, então a gente tem que ficar triplamente alerta.

Blog: Como os pais podem explicar para os seus filhos sobre o seu corpo e que ele não pode ser tocado de forma inapropriada por ninguém?

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Paula: Não tem idade para a gente começar a falar com os filhos sobre o corpo deles, sobre os limites, tem que ser desde pequenininhos. 'Ah, mas eu vou falar essas palavras com ele', sim, tem que falar principalmente os nomes corretos: 'é o pênis', 'é a vagina'. Você pode falar 'perereca'? Pode, mas tem de explicar, 'filha, a perereca é a vagina', você pode dar apelidos, mas também tem que dar os nomes. Por quê? Porque é importante que aquilo tenha o significado maior, para quando um adulto citar essa palavra isso seja alerta de alguma coisa. Então vai dar banho, vai nomeando, 'cadê o cabelinho, cadê os dedinhos, cadê a perereca, cadê a vagina, cadê o piu piu, cadê o pênis?' E dizer 'esse é só do bebê, aqui eu só posso mexer para limpar, tá'? Aquela criança vai crescendo e você aumentando ou diminuindo a intimidade daquelas partes de acordo com a independência dela. Explicar 'bom, agora você já sabe se limpar, ninguém mais pode mexer aqui'. Então desde pequeno tem de dizer 'esse corpo é seu', não deixa ninguém tocar. E quem pode tocar no meu corpo? As pessoas que a gente confia, a mamãe, o papai.  Só que aí a gente diz que 'fulano de tal' pode tocar e o 'fulano de tal' é o agressor.

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O que eu costumo sempre deixar claro é que os adultos de confiança não podem pedir segredo de nada e que isso tem que ser dito à criança. Se 'você tem um segredo com a mamãe tem que contar pro papai também', ou vice-versa. Permitir que a criança tenha segredo com um adulto só pode fazer com que ela se aprisione com o próprio agressor.  Eu como terapeuta destaco 'vamos contar para a mamãe, vamos contar para o papai, em quem você confia?'. A criança precisa ter mais de um adulto de referência, de confiança, para ela poder se abrir. A ideia de que esse tipo de conversa vai estimular a criança para o sexo é um mito. Informação é proteção, isso a gente precisa ter muito claro.

Blog: Existem pais que estimulam as crianças a abraçar e beijar pessoas que elas não querem, às vezes parentes e desconhecidos. O que você acha disso?

Paula: Tem isso, mas também há crianças que são muito afetivas, que vão e abraçam e beijam sem mesmo que os pais orientem e isso a gente também precisa cuidar, com essas crianças a gente também tem que conversar, dizer 'não é todo mundo que a gente abraça, não é todo mundo que a gente beija, não tem essa necessidade', explicar que a gente tem, sim, que cumprimentar as pessoas, dizer 'como vai', despedir-se, mas que não precisa ser necessariamente com abraço e beijo. E com as crianças mais tímidas dizer, 'olha, se você não quiser, não precisa, a gente não sai beijando as pessoas que não conhecemos muito bem'. Pais e mães são agentes de proteção. Se eu estou em uma festa e vejo meu filho indo beijar uma pessoa ou um adulto ir lá e puxar uma criança para dar um beijo e eu a vejo desconfortável, eu tenho que ir lá e conversar e entender porque não gostou, 'ah, eu não gosto porque a barba me espetou' e tudo bem, ir lá e dar um significado para aquilo.

Blog: Quais os cuidados que os pais têm de ter nas redes sociais para não expor imagens dos seus filhos para pedófilos?

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Paula: Em princípio, eu acho que não precisa colocar foto de criança na internet até que ela se sinta responsável por si e possa dizer 'eu vou postar minha foto'.  Porque a gente não sabe o fim que essa foto pode ter, onde é que isso vai dar. Mas, se decidir postar, essa criança tem sempre de estar vestida. Essa coisa de só de biquíni, às vezes só com a parte debaixo do biquíni, ou os meninos só de sunga não é legal, porque você está deixando essa criança vulnerável. De preferência de roupa, porque a gente sabe que pedofilia existe, a gente sabe que isso acontece. Para quê eu vou filmar minha filha tomando banho e vou postar na internet? Não tem necessidade disso, essa é a intimidade do seu filho. E se você está contando para ele que o corpinho é dele, que precisa ter cuidado, como é que você vai colocar na internet ele tomando banho? A gente tem que ser coerente.

Blog: E quais são os riscos da internet e os jogos online para as crianças e adolescentes?

Paula: O jogo é um instrumento que nos aproxima do outro e o jogo online acaba tendo um pouco dessa função. Muitos desses jogos têm os chats e é impressionante o que você vê por lá, há adultos entrando e passando os telefones nos chats para as crianças e adolescentes, eles perguntam quantos anos as crianças têm e elas respondem 'tenho 12 anos, 'tenho 13 anos'. É impressionante o que isso é comum, e eu sempre denuncio essas pessoas. Todas. As crianças estão desprotegidas, eles estão na 'rede' e agora ainda mais com as aulas online, quando elas ficam cansativas eles deixam de lado e vão para o jogo.

A psicóloga e voluntária do movimento 'Eu me protejo', Paula Ayub  

Blog: A gente tem que educá-los digitalmente também, explicar que não podem oferecer informações pessoais, por exemplo.

Paula: Eu diria até mais, temos que acompanhar nossos filhos nessa trajetória. Porque se você só fala que é perigoso eles dizem 'eu sei!', eles criam esse discurso em uma determinada idade, principalmente os menores. Então você tem que estar junto, entrar nesses jogos, ter essa experiência para mostrar, 'olha, filho, tá vendo o que está acontecendo aqui, olha o que ele tá conversando, olha o que ele tá contando, isso pode ser um pedófilo'. E o que pedófilo, mãe? É uma pessoa que chama crianças menores de idade para conversar, para tirar foto, para ver o corpo dessa criança, isso é crime. 'Ah, mas eu não tenho tempo de acompanhar, ah mas é cansativo.' Infelizmente é o mundo que a gente tem. Não tem mais como não fazer isso, porque o perigo está dentro de casa em todos os sentidos.

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Blog: O que é pedofilia, afinal?

Paula: Esse assunto dá frio na barriga. Eu julgo que essa é uma das coisas mais cruéis para a infância, porque você subjuga um vulnerável e usa e abusa dele, da forma que quiser. O pedófilo abala de uma forma muito profunda o emocional daquela criança e jovem, que tem de enfrentar anos de reconstrução depois. A pedofilia, embora sempre tenha existido, é uma das piores coisas da atualidade, a diferença é que agora as pessoas têm um pouco mais de coragem para denunciar. A gente precisa zelar, guardar e proteger as crianças, porque a destruição causada por um pedófilo é muito grande. A pedofilia está no palavrão dito no chat do jogo, na fotografia, no toque, no beijo molhado que eu dou na bochecha daquela criança, na virada no olhar daqueles homens mais velhos quando veem um corpo em desenvolvimento, é aquela proximidade sexual a uma pessoa vulnerável. E a grande maioria dos agressores são próximos aquela criança, o que é ainda mais cruel.

Leia mais: Grupo de especialistas voluntários lança cartilha para prevenir abuso sexual infantil

Leia também: Filhos e até mães usados como armas de guerra 

 

Opinião por Rita Lisauskas

Jornalista, apresentadora e escritora. Autora do livro 'Mãe sem Manual'

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