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Diálogo intercontinental sobre futebol, com toques de política, economia e cultura.

A polícia de sempre e os reflexos da 'baixa cultura'

Carles: Suspeito que os conflitos entre jogadores em campo já fazem parte da cultura do futebol da América do Sul. Só que ultimamente, pelo visto, a polícia passou também a ser parte ativa, não?

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Por Carles Martí (Espanha) e José Eduardo Carvalho (Brasil)
Atualização:

Edu: Vai ser difícil contestar essa imagem que os europeus têm daqui enquanto não fizermos uma limpeza seletiva em torneios sul-americanos. Nesse caso, tenho bastante claro que o Brasil tem sido vítima, porque há muito tempo os clubes brasileiros não criam casos em torneios continentais. Há duas questões: uma é cultural, a 'baixa cultura' do futebol, que está enraizada em alguns grupos, principalmente envolvendo os hermanos argentinos, mas não os times de ponta, é bom frisar; a outra é a negligência geral, que inclui organizadores, dirigentes, esquema de segurança, arbitragem.

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Carles: A sabedoria popular brasileira diz "se um não quer, dois não brigam". Entendo também que ninguém vai tomar uma porrada e dar a outra face, mas o que mais me incomoda nas imagens é o comportamento da polícia, truculento e até xenófobo. Não digo que os verdadeiros culpados não sejam os visitantes, mas sempre existe uma clara posição policial de não permitir "que esses gringos venham fazer bagunça aqui", mesmo antes das apurações. Isso só faz agravar a situação e até ampliar as consequências. Sinceramente, vistas sem áudio e ajudado pelos uniformes e armamentos de guerra deles, traz-me à lembrança as tristes imagens dos anos 70 no Estádio Nacional de Santiago de Chile.

Edu: É bom que fique claro: isento jogadores e equipes brasileiras, não o resto. Especialmente policiais. Nos dois últimos problemas que tivemos no Brasil, a polícia foi ator principal. Primeiro no confronto com os jogadores do Tigre, argentino, no Morumbi, na final da Copa Sul-Americana. Houve quebra-quebra, agressões, vestiário vandalizado e a polícia baixou o porrete. Na quarta-feira, em Belo Horizonte, o jogo terminou em relativa paz, 5 a 2 para o Atlético contra o Arsenal de Sarandi, também argentino, um marcador que, convenhamos, não deixa dúvida sobre o que aconteceu no jogo. Os jogadores estavam tranquilamente trocando camisas e se cumprimentando quando um pequeno grupo foi peitar o árbitro. Aí chegou a polícia e deu no que deu. Os episódios de xenofobia são evidentes, aqui, em Buenos Aires, na Europa. Não tem disfarce, é xenofobia pura, e dos dois lados. Nessa história de futebol, Carlão, ninguém é santo. E, lógico, a violência policial chama mais a atenção, porque os caras se transformam em animais com um porrete nas mãos. Mas daí a provocar lembranças da era Pinochet, dá um tempo né.

Carles: Não, claro que não estou comparando. É só déjà vu. Mas o paradoxo é justamente esse, a evolução das sociedades sul-americanas é clara e evidente. E nesse tempo todo, as forças policiais parecem as mesmas. Pelo menos desde longe, mostram-se tão arbitrárias, irracionais e provocadoras como as do Pinochet. Como se tivessem parado no tempo em vez de acompanhar a evolução do mundo civil, entende?

Edu: Claro, a falta de qualificação dos caras é gritante, não se trabalha com inteligência, mas com os músculos e com as ferramentas que estão ao alcance  - as armas. Mas temos que incluir o comportamento policial no contexto da organização. Se não há capacitação dos policias é porque quem comanda o esporte também não é capacitado. As forças policiais que trabalham em campos de futebol no Brasil são minimamente especializadas. São, via de regra, tropas de rua, treinadas para conter isso que vocês chamam de 'violencia callejera', a agressividade das gangues, dos grupos de jovens violentos, das diversas tribos desgarradas. No fim, torcida, jogadores, turistas entram todos no mesmo saco dentro de um estádio. Se houver confronto, a polícia baixa o pau. E, nesse caso, posso garantir: é assim em toda a América do Sul. Também por isso a Libertadores da América nunca será uma Champions. Aliás, quando à Polícia, nem sei se a diferença é tão grande assim com a Europa, a julgar pelas imagens que vemos aqui também - como aquelas da Eurocopa. Só que tudo fica longe do campo de jogo.

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Carles: Polícia é sempre o braço que bate ou deixa de bater, dependendo de quem é o mandatário. É só comprovar a atuação das forças policiais europeias durante as repressões dos movimentos populares, nas fases em que predominam os governos de direita. Mas a questão agora é o foco que aponta direto ao organizador da próxima Copa. E as imagens, injustamente interpretadas ou não, pululam pelas telinhas de todo o planeta. Provavelmente, tem gente que pensa que polícia violenta é sinal de maior proteção, mas eu discordo, Acho mais interessante a imagem de policias informando, orientando... Outras cenas que deixam em evidência a relação da polícia com a população foram aquelas em Salvador quando do início da venda de ingressos para a Copa das Confederações.

Edu: É preocupante, muito preocupante. Se bem que nessas ocasiões grandiosas o Brasil meio que se 'cotiza' moralmente para fazer as coisas parecerem melhores do que são - o que é outra distorção. Nem acho que haverá violência policial dentro dos estádios nos grandes eventos esportivos, mas não quer dizer que o problema nosso estará resolvido, porque as outras faces da violência estarão por aí, visíveis e sem prazo de validade. De qualquer jeito, no que diz respeito ao futebol, a doença é de todo o continente, embora não seja um consolo. Seria preciso uma revolução de costumes dentro do esporte para banir essas aberrações dos estádios.

Carles: Insisto que a atenção recai especialmente sobre o Brasil, mesmo que o problema seja de todo o continente. Primeiro pela responsabilidade e proximidade dos próximos eventos esportivos. Segundo para demonstrar que o recente salto evolutivo não é só um fenômeno econômico, mas que vai conseguir os reflexos necessários à educação para recuperar uma parte do que se foi perdendo pelo caminho desde a metade o século passado. Sinceramente, eu começaria pela educação das forças policiais.

Edu: Tem razão, seria um bom começo.

 

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