A Pirâmide de Carstensz, maior montanha da Oceania, estava fechada para montanhistas desde 2019, por causa do avanço dos conflitos entre o governo da Indonésia e a organização rebelde Movimento Papua Livre, que tem como objetivo tirar a região da Nova Guiné Ocidental do controle indonésio. No final de 2024, houve uma janela em que se permitiu o acesso aos interessados em alcançar o cume da gigante de 4.884 metros.
Entre os candidatos, a ultramaratonista brasileira Fernanda Maciel e seu sonho de escalar, em alta velocidade, os Sete Cumes, nome dado ao grupo das montanhas mais altas de cada continente. Na Indonésia, riscou o quinto nome da lista. Restam o Everest e o Denali. “Quando eu conseguir, acho que não vai me criar superpoderes, nem nada. Vou ficar super agradecida, mas, nos próximos dias, vou sair para fazer minha corrida normalmente”, conta ao Estadão.
“Eu gosto muito de colocar projetos à minha frente, porque, se não, eu posso ficar tranquila no sofá. Me falam: ‘nossa, se você tiver férias, você vai ficar correndo todo dia’. Não, tranquilo, eu fico no sofá. Gosto de colocar objetivos porque, se não, eu vou ficar sentada mesmo. Isso eu já vi que não é legal. Eu vou ter alguma outra coisa que vai mexer comigo. Isso me mantém muito viva. Vou compartilhar tudo de bom, tudo de ruim que aconteceu, o que eu tive de aprendizado, e vou começar a sonhar de novo”, completa.
A mineira de 45 anos eleva os desafios físicos e mentais do montanhismo ao combinar escalada e corrida para alcançar os maiores picos do mundo no menor tempo possível. Em Carstensz, precisou de 1h04min para chegar ao topo e bater o recorde feminino do trajeto. O percurso de ida e volta durou 1h48min, outro recorde. Tudo isso ocorreu após dias de espera e, enfim, alívio ao receber autorização para a expedição, empreendida sob a companhia de militares armados.

No meio do caminho, estava o corpo do chinês Dong Fei, que morreu no local um dia antes, após uma queda causada por um erro técnico no manuseio das cordas, durante uma tempestade. “A chance de eu voltar nesse lugar era muito difícil. Isso mexeu muito com o meu mental, meu emocional, mas tomei a decisão de enfrentar o medo, respeitando o corpo e toda a crença”, diz a ultramaratonista.
“Para mim, o corpo é só corpo, eu tenho outro entendimento da espiritualidade, então não perdi o respeito pela alma da pessoa. Eu consegui fazer. Não foi um projeto fácil, é muito arriscado mesmo. A pedra fica molhada sempre. E para fazer em tempo recorde, eu não posso errar. Cria um respeito, uma responsabilidade no meu ato da corrida, muito grande.”
Situações como essa testam a força mental de atletas como Fernanda, já acostumados a lidar com o desconforto nas provas de ultramaratona, cujas distâncias são a partir da 42 km. Nos desafios nas montanhas, a adversidades que se impõe são ainda maiores, e mortes não são incomuns. Quando decidiu subir o Matterhorn, na Suíça, a mineira perdeu o colega de quarto argentino Gonzalo, esmagado por uma rocha. Enquanto treinava, teve as pupilas congeladas e temeu ficar cega. Mesmo assim, escalou.
“Pensei que eu deveria enfrentar esse trauma, porque isso pode refletir em outras montanhas. Eu tenho um trauma com essa montanha, onde já me aconteceu isso, me gerou uma dor emocional muito grande. Ter subido ela para mim foi uma cura total. Ela realmente me curou de muitos bloqueios que eu tinha em relação à morte, em relação a ter um amigo que faleceu na montanha. Era muito pesado. Eu ter tido o acidente com meus olhos. Foi uma liberação muito boa. Você ver seu trauma, trabalhar devagarzinho com ele, sem forçar, e conseguir fazer. No final, isso me liberou de muitas coisas”, diz.
Ela também perdeu uma amiga em Manaslu, no Nepal, e ainda não conseguiu fazer as pazes com a montanha. Quando foi chamada pelo marido para uma expedição nos Himalaias, preferiu não ir para “respeitar os limites emocionais”.
“Tem tantas montanhas no mundo. E afinal, o que é uma montanha? São blocos de pedra que estão ali. Vamos ser realistas também, a gente não tem de sofrer tanto para subir ali. Cada um tem seu sonho, eu tento seguir os meus, mas sempre respeitando meu coração. Se meu coração fala que eu devo subir, treinar muito e tentar chegar ali, eu faço. Se não, não.”
Fora a dor causada pelas perdas, Fernanda teve de lidar com dores e problemas físicos sérios entre suas aventuras. Em 2021, acidentou-se em Calanques, na França, enquanto escalava com o marido e teve uma concussão cerebral, que lhe trouxe sintomas como náusea, tontura, visão turva, dor de cabeça, dor no pescoço, dor no ouvido, dificuldade de lembrar, dificuldade de concentração, cansaço e problemas com luz e barulho. Por isso, classifica o dia do acidente como o pior de sua vida.

Das corridas rumo à escola aos 7 cumes
Apesar de ter de enfrentar consequências do trauma cerebral ao longo dos anos, a mineira continuou sua jornada, e correndo, como sempre gostou. Era assim que ia para a escola quando adolescente e que treinava a parte física na época em que praticava ginástica artística, modalidade pela qual chegou até a competir. Neta de um campeão de jiu-jitsu e filha de um mestre de capoeira, também já se aventurou nas artes marciais.
A corrida e estar ao ar-livre, contudo, sempre foram as preferências. A afinidade com a natureza a tornou advogada ambiental, com serviços prestados ao Governo de Minas Gerais, mas deixar a carreira e se dedicar ao esporte foi um caminho natural. Começou a fazer provas rua, de 5km e 10km, aumentou a régua e descobriu as corridas de aventura, enquanto se dividia como o trabalho em uma ONG ambiental atuante no Brasil e na Espanha.
Fernanda conheceu a ultramaratona quando recebeu o convite para participar de uma, durante uma viagem a trabalho na Europa. Depois de participar da primeira, pegou gosto e viu que se saía bem. Acumulou conquistas em competições ao redor do mundo, com campanhas de destaque no circuito Ultra Trail World Tour, do qual foi vice-campeã em 2014, e quatro pódios na ultramaratona de montanha anual Ultra-Trail du Mont-Blanc
O projeto dos 7 cumes começou em paralelo às competições, em 2016. “Quando eu estava na Europa, eu queria muito subir a montanha mais alta do Brasil. Fiquei pensando, eu tinha que subir o Aconcágua, porque no Brasil a gente não tanta alta montanha. Queria um super desafio. Então, pensei: ‘eu vou tentar subir correndo o Aconcágua, a montanha mais alta da América”.
Ao concluir o trajeto pelo Aconcágua em 22h52min0s, a brasileira se tornou a primeira mulher a subir e descer correndo a montanha de 6.962 metros localizada em território argentino. No ano seguinte, em 2016, estabeleceu o recorde de subida e descida do Kilimanjaro, maior montanha da África.
Subiu os 5.895 metros em 07h08min e fez 10h06min de tempo total. Também concluiu o Monte Elbrus, em 7h40min0s, ponto mais alto da Europa, na Rússia, mas não conseguiu o recorde, que pertence a uma montanhista local. Na Antártida, em 2023, fez a subida mais rápida entre homens e mulheres do Monte Vinson, em 6h40min. Também marcou o melhor tempo somando subida e descida, com 9h41min.
“Fiquei apaixonada por esses projetos. Porque eram locais onde a cultura é totalmente diferente, onde eu tenho um tempo para mim sozinha. Eu adoro ficar sozinha. Nas competições, são 3 mil corredores do meu lado. Nesse projeto, além de ser mais difícil, era uma coisa muito especial para mim. Eu era a única mulher tentando, então era uma coisa muito desafiadora para mim. Eu era pioneira, isso me dava uma carga de responsabilidade e motivação muito maior”, conta.
Restam o Denali, na América do Norte, e o Everest, na Ásia, duas missões que a brasileira já tentou executar e não conseguiu concluir. As próximas tentativas estão previstas para 2026. No Denali, dois anos atrás, caiu dentro de uma greta e sofreu um acidente em meio à nevasca. Ano passado, no Everest, encontrou novas dificuldades.
“Tive um problema com a equipe, os câmeras estavam doentes. O xerpa (etnia da região mais montanhosa do Nepal, no alto dos Himalaias) teve um problema no pé dele. Eu não podia ir sozinha. É muito difícil. Foi minha primeira experiência ali e eu vi vários erros. Eu também treinei demais, depois de três semanas eu estava mais cansada do que deveria. É muito difícil porque é uma montanha de 8 mil e 800 metros. Estava mais do que preparada e acabou que não deu certo”, lembra.

Ativismo ambiental e mulheres nas montanhas
Seja correndo em competições ou rumo aos cumes mais altos do mundo, Fernanda Maciel tem alguns compromissos que mantém consigo: cuidar do meio-ambiente e inspirar mulheres. A mineira nunca se desfez do traço que a levou à advocacia ambiental. Nos lugares por onde passa, tenta entender os problemas socioambientais e busca ajudar com o conhecimento que adquiriu enquanto exercia a profissão.
“O pessoal fala: ‘por que então não ajuda o Brasil?’. Mas eu tenho interesse de ir em Carstensz e saber qual o problema maior ali. Estive na Indonésia, onde tem as praias mais lindas do mundo. A praia é linda, na frente dela é só plástico. É muito triste. No Brasil a gente tem praias lindas e a maioria é limpa. Já contatei as organizações dali, as instituições que limpam as praias. Já fiz doação, quis discutir trabalhos que eles fazem, como melhorar, compartilhar sobre isso. É o mínimo que eu posso fazer estando ali”, diz..
No Aconcágua, notou a falta de um processo de reciclagem e deficiências na forma da coleta de lixo. “A própria coleta é super precária, mas ainda é muito melhor que no Everest, por exemplo. Fui conversar com o Prefeito lá de Mendoza, a cidade mais próxima do Aconcágua, para ver como se faz a reciclagem em Mendoza. Esses pequenos passos acabam que geram muitas coisas positivas, quando eu estou lá para dar meu feedback como advogada ambiental, porque eu já tive vários processos aqui, projetos de reciclagem em Minas Gerais.”
Fernanda também se preocupa em trazer mais mulheres para o esporte que prática. Ainda considera o ambiente desafiador e majoritariamente masculino, e justamente por isso vê a necessidade de mais mulheres correndo pelas montanhas mundo afora.
“Não quero que nenhuma delas sinta medo de arriscar como eu arrisquei, de sonhar como eu sonho. Tudo com equílibrio e vontade você consegue. É lindo, porque você está em um meio de muita conexão para o ser humano. Se você já gosta de correr em asfalto, corra também em trilha para ver o que te traz benefício. A gente ainda é muito medrosa. Se a gente não vê outras mulheres fazendo, a gente fica com medo, se é um espaço para gente”, afirma.
“É uma coisa que eu sofro na alta montanha. Na corrida, tinha uma ou outra mulher correndo. Hoje em dia tem muita mulher correndo. Na alta montanha é assim também. Quando eu vou fazer os projetos, sofro ainda com muita discriminação por causa do meu gênero. Isso é uma coisa normal, porque tem poucas. Por isso, eu dou mais valor se vejo uma mulher fazendo isso, porque ela me encoraja também. Todas as mulheres que me escrevem me ensinam muito.”