‘Uma bomba a ponto de explodir’: crianças e adolescentes encaram pressão de ‘gente grande’ na base

Legislação regula vínculo de jovens em formação, mas situações que reproduzem esporte de alto rendimento e competitividade exagerada são potenciais riscos para desempenho, educação e até na constituição de identidade

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Foto do author Rodrigo Sampaio
Atualização:

“Tem pais de todas as maneiras. Tem os que acham que o filho já é craque. Os que dizem que já tem não sei quantas propostas de contratação. São muitos os que sonham”. A frase é de um pai cujo filho atua como meio-campista nas categorias de base de um dos principais clubes de futebol da capital paulista. O relato dá a dimensão da pressão sofrida por jovens, ainda de pouca idade, para corresponder as expectativas de familiares e atingirem potenciais de jogadores Endrick ou Neymar.

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O cenário de torneios envolvendo adolescentes abaixo dos 14 anos não é muito diferente do profissional. Xingamentos aos garotos e discussões nas arquibancadas são comuns. “Uma vez em um campeonato na Vila Maria, vi uma mulher jogando uma lata de cerveja que acertou uma criança em campo. A mãe do menino se revoltou jogou um copo na cara da mulher”, conta o pai no relato.

O responsável pelo promissor atleta conta que o filho demonstrou a paixão pelo esporte logo aos quatro anos, quando trocou a chupeta pela bola de futebol. Ele foi matriculado em uma escolinha de futebol perto de casa, em Guarulhos. Aos seis, a criança passou em uma peneira para jogar futsal na Portuguesa e, depois, teve uma breve passagem pelo Santos antes de chegar no atual clube. O adolescente precisou passar por um tratamento hormonal para o desenvolvimento ósseo para não ficar atrás de outros meninos da mesma categoria.

Esporte é entendido como um espaço em que 'se aprende a ganhar e perder', mas pressão pode extrapolar a formação e criar lacunas emocionais. Foto: Ronaldo Barreto/Ag. Paulistão

Motorista de aplicativo, o pai sempre acompanhou o filho nos torneios, inclusive no Paraguai, e conta que busca blindar o jovem para não atrapalhar sua trajetória. “Eu não quero que ele sinta a pressão de jogar bola para ganhar dinheiro. Ele tem que jogar por amor”, conta, revelando que a família declinou uma oferta do Grêmio antes de fechar com o atual clube para manter o jovem perto da família em SP.

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Paulo Roca, responsável por levar Endrick ao Palmeiras e um dos principais captadores de talentos no País, conta ser cada vez mais comum pais abandonarem seus trabalhos apostando que o filho irá vingar no futebol. Em sua avaliação, a incumbência do jovem em ser o único provedor único da família é extremamente prejudicial. Ele recorda o caso de um jogador que passou pelas suas mãos, atualmente no sub-20 de um dos principais clubes do Rio, e que era alvo de cobranças excessivas por parte do pai.

“Era uma pressão muito grande para que o menino rendesse cada vez mais. Eles moravam em Jundiaí, o pai ia no jogo, e voltava cobrando o menino com dedo em riste. A gente foi controlando isso, mas é uma bomba a ponto de explodir”, conta, citando ainda que os pais confiavam exclusivamente no talento do menino e não davam a devida atenção à formação do garoto, com divergência internas na família. “Tivemos várias reuniões. A mãe dizendo que o pai estava fazendo tudo errado, e ele reclamando que a criança não estava rendendo. Falei que quanto mais eles agissem assim, o garoto ia render cada vez menos.”

Quando tinha 15 anos, Endrick já era destaque no espanhol 'Marca', um dos principais jornais esportivos da Espanha; aos 16, ele teve sua venda para o Real Madrid acertada para dois anos depois. Foto: Reprodução/Marca

Em outro bastidor, Paulo recorda que já recusou assinar o agenciamento de um jovem de categoria sub-11 porque, entre outras exigências, os pais pediram R$ 400 mil para fechar o acordo. “Eu recusei na hora. Falei que eles queriam o dinheiro para não trabalhar mais. E eles precisam trabalhar para dar o exemplo ao menino. O que eles fizeram? Fecharam com outra empresa que ofereceu o valor...”.

Jovens engajam nas redes, viram ‘ativos’ e são disputados por clubes

Recentemente, o Corinthians foi excluído do Movimento dos Clubes Formadores (MCF) sob a acusação de aliciar um garoto vinculado à base do Palmeiras. O clube negou, mas fato é que a busca por talentos no futebol mira garotos desde cedo. Endrick, por exemplo, foi apresentado ao Palmeiras com apenas nove anos.

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Em meados de 2024, contudo, foi o clube alviverde que tentou tirar o garoto Lucas Flora, de 11 anos, do rival. Segundo Claudinei Alves, diretor das categorias de base do Corinthians, o Palmeiras ofereceu R$ 200 mil à época para que para assinatura de contrato. Os pais do menino chegaram a reclamar de um “despreparo” do Corinthians e apontaram baixos valores, mas Lucas permaneceu na base alvinegra.

O que ajuda o caso a repercutir é a forte presença do garoto nas redes sociais, com vídeos de lances que mostram seu talento, encantam e geram expectativa a torcedores. Hoje ele conta com 323 mil seguidores no Instagram e um patrocínio com a Nike.

Com menos de 12 anos, Lucas Flora já foi 'disputado' entre Corinthians e Palmeiras e é patrocinado pela Nike. Foto: @floraoficial_ via Instagram

As redes sociais também alavancam Enrico, de apenas 6 anos. O menino jogou no futsal do Flamengo em 2023 e migrou para o campo em 2024, quando disputou o Campeonato Carioca Dente de Leite. No seu perfil no Instagram, que conta com indicação de que é monitorado pelos pais, são 317 mil seguidores.

Foi publicado lá um “agradecimento à Nação Rubro-Negra”, quando deixou o clube, em janeiro deste ano. “Chegou o momento de nos despedirmos. Com o coração repleto de emoções, quero expressar minha profunda gratidão por tudo que vocês fizeram por mim. A Nação Rubro-Negra me recebeu de braços abertos, e sempre que vesti essa camisa, seja para jogar ou torcer, fiz isso com muita raça, amor e paixão, exatamente como deve ser”, diz o texto.

Ainda que dificilmente o texto tenha sido de autoria do garoto, a mensagem o coloca como um astro do futebol, inclusive com pedido para que a torcida não se chateie com sua saída. “Nação, espero que compreendam minha decisão e que não fiquem tristes comigo”, diz um trecho. Dias depois do post, seu perfil publicou uma foto junto de Claudinei Alves, do Corinthians.

Post de Enrico Almeida Moreira, de 6 anos, fez despedida do Flamengo e pedido para que 'Nação Rubro-Negra não fique triste'; dias depois, Claudinei Alves, da base do Corinthians, o 'anunciou' em seu perfil. Foto: @claudineialves1910 via Instagram

Há casos que param na justiça. O Atlético-MG precisou, no fim de 2024, de uma revisão de uma decisão já transitada em julgado para poder integrar adolescentes entre 12 e 14 anos nas suas categorias de base.

No entendimento da juíza June Bayao Gomes Guerra, da 11ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, a Lei Geral do Esporte permite o vínculo esportivo de adolescentes com clubes de futebol a partir dos 12 anos, sem que a relação seja trabalhista.

O clube havia sido proibido judicialmente de contar com atletas sub-14 pela Justiça do Trabalho, com base na Lei Pelé. Na época, a condenação se deu porque 12 garotos das categorias de base moravam em condições precárias em uma pensão informal de Belo Horizonte, sem apoio médico ou psicológico, ferindo Lei Pelé e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

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O clube afirmou, na época, que já cumpria com a decisão de não contar adolescentes com menos de 14 anos, mas alegava que a Cidade do Galo, o centro de treinamento atleticano, tinha condições para receber os garotos.

Para a revisão, o Atlético-MG argumentou que a Lei Geral do Esporte, sancionada quatro anos depois, permite a formação esportiva e a participação em competições esportivas de adolescentes a partir dos 12 anos. Hoje, depois da revisão, o clube mantém uma categoria sub-14.

A LGE, quando foi sancionada, não revogou a Lei Pelé, o que causa imbróglios em alguns casos jurídicos. Ainda assim, é avaliado que ela é o que acaba por garantir uma estrutura adequada para a formação dos jovens na base de clubes.

“A partir do momento que você estabelece esses cuidados e você observa esses parâmetros mínimos da dignidade da pessoa humana, inclusive, cuidando para que não haja evasão escolar, porque essa é uma exigência da lei, você estimula o próprio desporto”, comenta o advogado Mauricio Corrêa da Veiga, auditor do STJD do basquete e do vôlei e vice-presidente da Academia Nacional de Direito Desportivo.

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Psicólogo alerta para ‘situações que podem devastar a constituição da identidade’

Tabu até no futebol profissional, o tema saúde mental entra em pauta quando se observa a pressão em crianças e adolescentes para virarem jogadores de futebol. A lei que obriga clubes a se estruturarem, não impede que situações como as narradas neste texto aconteçam.

Isso, contudo, não é motivo para simplesmente abolir categorias menores. “Os esportes coletivos são importantes meios para a socialização de crianças e jovens, adolescentes, desde que feito com pessoas com conhecimento, apoiados pela família e feitos de uma forma leve e prazerosa”, avalia o doutor João Ricardo Cozac, presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte e do Exercício físico, doutor em Psicologia Esportiva e com mais de 30 anos de trabalhos na área.

Segundo Cozac, cobranças e expectativas da família, negociações de contratos e “tudo aquilo que as crianças ainda não são capazes de lidar emocionalmente” são elementos que tornam a experiência do esporte periogosa no campo do alto rendimento.

Esporte é espaço para aprendizagem e desenvolvimento; pressão e tensões têm potencial de afetar a vivência de crianças e adolescentes.  Foto: Fernanda Luz/Ag. Paulistão

No caso das crianças, o especialista defende que a prioridade do esporte é passar por recreação, conhecimento das habilidades do corpo, possibilidade de fazer amigos, expandir o seu conhecimento de si diante do mundo e a constituição da sua identidade.

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“Essas situações em que a criança é disputada por clubes, como se fosse um atleta profissional já de 17, 18, 19, 20 anos, dependendo da forma como é vivido pela criança e conduzido pela família, sem dúvida nenhuma que pode ser um elemento devastador na constituição da identidade, na formação da auto-imagem, no conceito que a criança vai ter sobre o que é a prática esportiva. E isso, claro pode, gerar marcas não só para aquele momento, mas para a vida como um todo”, pondera Cozac.

CBF impõe regras para formação, mas cerca de 7,2% dos clubes cumprem requisitos

Conforme apuração da Câmara dos Deputados, existem 778 clubes profissionais em atividade no País. Uma lista divulgada pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) aponta que apenas 56 são formadores certificados pela própria entidade. Pata obter o Certificado de Clube Formador (CCF), são exigidos: técnicos e preparadores físicos exclusivos; participação em competições oficiais; programa de treinamento (local, horários, faixa etária, atividade escolar etc); assistência educacional e assistência médica.

O espaço disponibilizado pelo clube deve estar em acordo com laudos técnicos de Corpo de Bombeiros e Vigilância Sanitária, além de dispor de um alvará para uso de alojamentos.

Em 2019, eram estimados em 406 os clubes brasileiros que atuavam com categorias de base sem CCF, segundo o relatório “O futebol masculino brasileiro e a escolarização no processo de formação de jogadores”. O trabalho foi publicado pela Universidade do Futebol, em parceria com o Indústria Base, veículo especializado na cobertura do esporte e direitos das crianças.

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Segundo a pesquisa, isso não invalida, claro, os que estão em dia com as obrigações e proporcionam estrutura e boa formação educacional a seus jovens. Entretanto, o texto aponta que, sem a garantia de que há um programa de treinamento com atividade escolar planejada, abre-se margem para um problema social que também extrapola o futebol.

“As matrículas em escolas particulares e a necessidade de reforço para alguns jogadores, sinalizam que a defasagem educacional é um fenômeno que extrapola o futebol, ela atinge as camadas sociais dos jovens que usualmente buscam no esporte uma esperança de ascensão social que a escolarização não lhes aparenta proporcionar”, diz o texto.

Brasileiros com Certificado de Clube Formador

  • Bahia (2): Bahia e Bahia de Feira
  • Ceará (2): Ceará e Fortaleza
  • Espírito Santo (1): Porto Vitória
  • Goiás (1): Goiás
  • Mato Grosso (1): Cuiabá
  • Minas Gerais (7): América, Atlético-MG, Boston City, Coimbra, Cruzeiro, Dínamo e Internacional de Minas
  • Paraná (4): Athletico-PR, Azuriz, Coritiba e PSTS
  • Pernambuco (3): Náutico, Retrô e Sport
  • Rio de Janeiro (7): Botafogo, Flamengo, Fluminense, Nova Iguaçu, Resende, Vasco e Volta Redonda
  • Rio Grande do Sul (3): Grêmio, Internacional e Juventude
  • Santa Catarina (6): Avaí, Barra, Chapecoense, Criciúma, Figueirense e Hercílio Luz
  • São Paulo (17): Audax, Botafogo de Ribeirão Preto, Bragantino, Comercial, Corinthians, Desportivo Brasil, Ferroviária, Guarani, Ibrachina, Ituano, International Academy, Metropolitano, Novorizontino, Palmeiras, Santos, São Paulo e Sfera.

“O certificado de formação concedido pela CBF foi crucial para o Cuiabá. Ele representa uma validação oficial da entidade, destacando o compromisso do clube em atender às exigências necessárias para formar atletas. Essa conquista é de grande significado para nós, pois temos conseguido atrair mais jovens talentos para nossa base, garantindo um desenvolvimento seguro dos jogadores”, avalia Cristiano Dresch, presidente do Cuiabá.

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“Os requisitos são fundamentais para promover o desenvolvimento dos nossos atletas. São medidas, atividades e atualizações que os clubes devem implementar para uma formação de qualidade. Apesar de exigirem esforço, com a colaboração de todos internamente, conseguimos alcançá-los”, avalia.

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