Ainda doem em Koosha Delshad os insultos xenofóbicos que sofreu em sua primeira experiência como treinador no comando do Comercial do Piauí. O técnico de 39 anos, que migrou do Irã para o Brasil em 2014 não esperava ser vítima de ofensas discriminatórias no país que o acolheu e que tinha tantas recomendações de hospitalidade.
“Os torcedores me xingaram de burro, mas isso é comum no futebol, não prestei muita atenção. O problema foram os xingamentos xenofóbicos. Eles disseram ‘treinador terrorista’, ‘solta bomba’, e me chamaram também de ‘homem-bomba’”, relata o iraniano ao Estadão, ao confessar que veio ao Brasil atrás de um grande amor de sua vida. Na verdade, dois, porque ele considera o futebol um grande amor também.
Foram, conforme ele contou, mais ou menos dez torcedores do Comercial situados atrás de um dos gols do estádio que o atacaram com xingamentos xenofóbicos mais de dez vezes em jogo do Campeonato Piauiense contra o River-PI, no dia 1º deste mês, e que fizeram com que pedisse demissão do cargo horas depois da partida e um dia após ser anunciado como técnico da equipe.
“Eles ameaçaram a gente. Fomos escoltados pela polícia. Disseram: ‘nós vamos matar vocês’”, diz ele, já fluente em português. “Cheguei no hotel e renunciei ao cargo. Posso aguentar a pressão, mas isso o que aconteceu foi crime, descriminação contra um estrangeiro. Não posso aguentar isso”.
O episódio ocorrido no Estádio Deusdeth de Melo, na cidade de Campo Maior, repercutiu rapidamente nas redes sociais em grande escala. Delshad recebeu mensagens afetuosas e de solidariedade de muitos amigos. “Foi muito dolorido, fiquei triste. Não esperava isso. Perguntei a mim mesmo por que isso aconteceu comigo. Mas se aconteceu uma coisa negativa, 99 coisas positivas aconteceram depois disso”, diz o iraniano.
Os ataques xenofóbicos não suscitaram em Delshad o sentimento de ódio nem de raiva do povo brasileiro. “Hoje meu país é o Brasil. Eu chorei pelo Brasil em 2018 e em 2022 pelas eliminações da seleção na Copa do Mundo e não chorei pelo Irã”, conta ele, dimensionando o carinho pelo Brasil.
Paixões
Foram duas paixões que o trouxeram ao Brasil. A paixão pelo futebol e por Mahsima Nadim, que hoje é sua mulher. Ela deixou o Irã em 2012, fugindo da repressão à qual as mulheres são submetidas na nação do Oriente Médio. Presa duas vezes pela polícia da moralidade, a maquiadora e dançarina encontrou no Brasil a liberdade que não tinha em seu país de origem, governado por um regime islâmico contra o qual eclodiu uma série de protestos populares no fim do ano passado.
“Meu sonho é que o Irã volte a ser uma democracia. Quero desenvolver o futebol no Irã, mas entendo que não vai acontecer, é muito difícil”, lamenta o treinador. “O governo iraniano é assassino, é terrorista”. Mesmo à distância, seu amor nunca mudou por Mahsima, até que ele resolveu também fazer as malas e vir atrás da mulher de sua vida. Sabia que podia realizar seus dois maiores sonhos no país de Neymar: reencontrar a amada e trabalhar no futebol. Atualmente, ele tem as duas coisas, mesmo a despeito do episódio de xenofobia sofrido no Piauí.
Recomeço
Dias depois de ser xingado de terrorista, Delshad passou a acumular experiências opostas às ofensas discriminatórias de que foi vítima. A dor pungente pelos ataques se transformou em esperança.
Ele recebeu mensagens carinhosas e convites de nomes importantes do futebol brasileiro. Reuniu-se com Mauro Silva, tetracampeão mundial e vice-presidente da Federação Paulista de Futebol (FPF) para um encontro na sede da entidade, em São Paulo, foi convidado pela técnica do time feminino sub-20 do Corinthians, Thaissan Passos, para assistir ao duelo contra o Inter, pela Supercopa do Brasil na última quinta-feira, e agora está pronto para recomeçar a carreira.
Delshad se prepara para treinar o Fernandópolis FC, time que disputa a quarta divisão do futebol paulista. A equipe tem parceria com a JK Sports, grupo de investimento com sede em Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, e que havia contratado o treinador para treinar o Comercial.
“Nos, iranianos, dizemos que no futebol é preciso ter sapato de metal. É muito difícil. Mas vou continuar”, salienta, sobre a profissão. “Tenho meus sonhos. Gosto do Brasil demais. Aqui é muito difícil, mas se você consegue sucesso no Brasil, consegue em qualquer outro país”.
Engenheiro elétrico de formação, Delshad foi jogador profissional no Irã, com breve carreira nos gramados, até os 23 anos. “Não tinha uma visão completa sobre treinador, mas gostava de tática. Imaginava que treinador só escalava, mas quando vim para o Brasil mudei de opinião”.
Enquanto se adaptava ao Brasil, trabalhou em uma fábrica de tapetes persas e encontrou tempo para se aperfeiçoar no futebol. Fez cursos na área, adquiriu conhecimento teórico e prático. Ele obteve todas as licenças do curso da CBF para treinadores depois que concluiu as categorias A, B e C. Por isso, pode dirigir qualquer time, inclusive os da elite do futebol brasileiro.
Foi auxiliar e analista no Cascavel CR, do Paraná, técnico do sub-15 e sub-17 do CFA Manchister, de Santa Catarina, e realizou estágios obrigatórios na base do Palmeiras e no elenco profissional do São Bernardo, que conquistou o acesso da Série D para a C do Campeonato Brasileiro no ano passado. “Os jogadores brasileiros são muito inteligentes. Todo treinador sonha em treinar jogadores brasileiros. Não são burros como alguns dizem. Futebol brasileiro é arte”, opina o iraniano.
Suas referências na profissão são o italiano Carlo Ancelotti e o alemão Jurgen Klopp, que comandam Real Madrid e Liverpool, respectivamente. Do futebol feminino, admira a sueca Pia Sundhage, técnica da seleção brasileira. No Brasil, destaca Abel Ferreira, português multicampeão pelo Palmeiras e também alvo de críticas no passado de cunho xenófobo.
Nos próximos dias, o iraniano começa seu trabalho no Fernandópolis. Sua mulher, Mahsima, vai continuar em São Paulo. “O futebol é assim. A mala do treinador está sempre na porta”.