Foi no apagar das luzes de 2020, já no mês de dezembro, e o feito alcançou pouca repercussão, mas é uma façanha e tanto. O decatleta paulistano Felipe Vinícius dos Santos, 26 anos, voltou a somar mais de 8 mil pontos na prova depois de cinco anos – registrou 8.364 e obteve o índice para os Jogos Olímpicos de Tóquio. Trata-se da segunda melhor marca da história da América do Sul, e daria ao brasileiro a oitava colocação nos Jogos do Rio ou a sexta no Mundial de Doha-2019.
Empolgado, o treinador Edemar Alves afirma que o pupilo tem tudo para ficar no top 5 no Japão. Já o próprio atleta, bastante reservado, evita projeções grandiosas. “Estou com os pés no chão. Quero ir lá e melhorar meu resultado. Não penso em coisas maiores. Sempre competi comigo mesmo”.
O mero fato de estar com os pés no chão, no entanto, já é uma felicidade imensa para Felipe, que treina em Bragança Paulista, no Centro Nacional de Desenvolvimento do Atletismo, e compete pela AABLU (Associação de Atletismo de Blumenau). Depois de uma cirurgia para reparação do tendão de Aquiles, em 2018, ele ficou seis meses sem poder pisar o solo. “Essa lesão quase me tirou do atletismo. Sentia muita dor e, quando voltei a treinar, não era mais o mesmo. Estava com a panturrilha muito fraca e dúvidas muito grandes se iria conseguir voltar a competir em alto nível”, revela o atleta.
A cirurgia no pé foi a segunda de grande envergadura na carreira de Felipe. A primeira foi na mão direita, consequência de uma fratura por estresse, e que demandou um enxerto. A esses problemas se juntou um outro bastante sério, de ordem financeira – seu orçamento foi comprimido violentamente depois do fim da equipe B3, a maior do país. Sem alternativa para pagar as contas, teve de se virar como motorista por aplicativo. De quarta a domingo, nos períodos da tarde e da noite, fazia as corridas, não na pista, mas a bordo de um i30, por volta de cinco a seis horas diárias. Isso depois de treinar por outras seis horas pela manhã.
“Passei a receber, no Pinheiros, apenas um terço do que ganhava na B3. O dinheiro era suficiente apenas para o aluguel. Para poder me alimentar, pagar suplementação e poder me deslocar, tive que buscar outra fonte de renda”.
Enfrentar o trânsito de São Paulo não foi um drama para o atleta, e ele viu benefícios na atividade, para além da complementação de renda. “Sempre fui muito tímido, fechado. A experiência no Uber foi boa para eu poder me comunicar melhor. Hoje acho até que me saio melhor nas entrevistas. Trabalhar depois de treinar era cansativo. Sentia dor nas pernas, nas costas, mas tinha que fazer”, diz o decatleta, que recebia elogios pelo papo e pela programação musical no som do Hyundai, composta por pagode, samba e MPB.
O treinador Edemar é testemunha dessa característica reservada da personalidade do atleta. Nem ele mesmo sabia que Felipe era motorista por aplicativo. “Ele demorou meses para me contar. Tinha receio de que eu ficasse bravo. É claro que não dei nenhuma bronca. Pelo contrário, eu teria tentado ajudar. Mas ele é assim mesmo. Não é de ficar pedindo favor”.
Refletindo um pouco sobre essa jornada, Edemar pondera que só mesmo a rígida disciplina que todo praticante de decatlo precisa construir, para aguentar a rotina de treinos e as dores sofridas ao longo das disputas, aliada a características próprias, foi capaz de manter o atleta em atividade.
“Ele é um cara extremamente focado. Se não tivesse tanta força de caráter, não teria insistido como insistiu, sem clube, sem salário”, diz o treinador, que reconhece também o papel exercido por outra grande incentivadora, a mulher do atleta, Tânia Ferreira da Silva, triplista da IEMA (Instituto Elizângela Maria Adriano).
O caminho de Felipe até desembocar no decatlo foi um pouco acidental. Aos 16 anos de idade, Felipe estava se tornando um meio-fundista sem futuro no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa, onde iniciou a carreira no atletismo. “Eu era pesadão para essa prova, e já não estava conseguindo dar resultado”.
Felipe passou correndo em frente a Edemar, que botou os olhos no garoto e percebeu que seu físico não era adequado para o meio-fundo. Depois da corrida, perguntou ao rapaz se gostaria de mudar de prova. “Nós não tínhamos um treinador de provas combinadas. Ele disse que iria fazer um programa específico de treinos pra mim, com foco no índice para o Mundial Juvenil de Lille-2011. Ele perguntou se eu confiava nele, e respondi que sim”.
No Campeonato Estadual, Felipe ficou a 12 pontos do índice, e sentiu-se arrasado. “Foi muito triste, porque faltaram só uns detalhezinhos”. Na competição seguinte, o Troféu Brasil, no Ibirapuera, o novato fez 300 pontos acima do índice. No Mundial, acabou faturando a medalha de bronze no octatlo, prova que funciona como iniciação para as provas combinadas nas categorias de base – tudo isso com apenas oito meses de treino. “Acabei me apaixonando pelas combinadas. É por isso que digo que não escolhi a prova, ela é que me escolheu”.
Mesmo sendo muito forte e pesado, Felipe tem um desempenho excelente nos saltos verticais – já chegou a registrar 5,20m no salto com vara em treinos. É claro que contribui para isso o fato de Edemar já ter sido auxiliar de Elson Miranda, que era o treinador da campeã mundial Fabiana Murer. No salto em altura, Felipe é o oitavo do ranking brasileiro, com 2,07m. Nos tempos em que estava com a mão direita fraturada por estresse, carregou o bastão com a canhota e foi campeão do 4x100m do Troféu Brasil pela B3.
“O Felipe é muito rápido. Por isso ele consegue ir bem nas provas de velocidade e de saltos. Ele ainda tem muita possibilidade de crescimento. Ainda não transfere toda a força que tem para o arremesso de peso e para o lançamento de dardo e disco. Já correu muito bem os 1.500m, porque era meio-fundista, porém, com o passar dos anos, ganhou muito peso e agora precisa melhorar. Mas ele tem muitos pontos fortes. Nunca desiste e luta até o fim”.