Há pouco mais de uma semana Pelé fez 74 anos e procurei ignorar. Aliás, quase todo mundo ignorou. De fato há pouco que comemorar quando alguém faz 74 anos. Mas percebi que o fato me atingiu particularmente porque de vez em quando volta a me assombrar. Por que isso me incomoda? Porque constato, de uma maneira difusa e um pouco imprecisa, que esse aniversário também me diz respeito pessoalmente. Não sei como esses 74 anos atingiram o próprio Pelé, mas a mim me atingiram fortemente. Eu e, certamente, muitas pessoas que tiveram Pelé como companhia por boa parte da vida. Acho que posso falar em nome de gerações que viveram tendo que lidar cotidianamente com a imagem do craque. Tento explicar: esse jogador, sempre com a mesma cara, o mesmo sorriso, a mesma expressão vivaz, durante anos e anos parecia me assegurar de maneira sutil que o tempo não estava passando. Cada vez que eu tinha a sensação que o mundo mudava, e eu com ele, lá estava Pelé diante de mim na televisão, não importa o ano nem a época, com os cabelos eternamente negros, a figura esbelta, e a forma impecável. Sai ano entra ano e nos vídeos e telas eis Pelé, acompanhado frequentemente por belas mulheres, sempre festejado, declarando invariavelmente as mesmas coisas em mensagens otimistas, de crença na bondade, nas ações positivas, nas criancinhas e em Deus. Pelé era, para mim, uma espécie de seguro contra o passar dos anos. Se ele se mantinha tão intocado, tão imune às agruras do tempo talvez eu também me mantivesse, quem sabe? Num certo sentido eu me via por meio dele. Somos quase contemporâneos. Comecei a vê-lo no início de sua história. Acompanhei as incríveis atuações pelo Santos, todos os mundiais, as jogadas que maravilharam o mundo, os gols, as declarações nem sempre ao abrigo de críticas, enfim, a vida dele se misturou com a minha de modo estranho. Mas para mim sua imagem só se cristalizou de uma vez quando seu futebol acabou. Porque ao contrário de todos os outros jogadores Pelé continuou mais presente do que nunca, como se nada tivesse acontecido. Continuou fazendo comerciais de todos os produtos inimagináveis, frequentando colunas sociais, aparecendo em competições internacionais e, para minha satisfação, sempre igual. Sempre feliz, sem a tristeza, e ás vezes a mágoa, que se lê no rosto de todo grande ex-jogador que envelhece. Jogadores que jogaram com ele ou contra ele se tornaram irreconhecíveis. Trapattoni, o italiano que o marcou nos jogos inesquecíveis contra o Milan em 1962, é um velho alquebrado. Mesmo Maradona, muitos anos mais jovem, ao seu lado se transformou num homúnculo esquisito, como aconteceu quando Pelé, majestoso e elegante, apareceu diante dele num programa da TV argentina. Contam-se prodígios a seu respeito. Um amigo diretor de filmes publicitários me disse que certa feita dirigiu um comercial com Pelé onde era necessário que o craque executasse uma bicicleta. Bem, como já estava muito além dos 50 anos, a produção contratou prudentemente um dublê para executar o difícil lance. Ao saber do dublê Pelé ficou indignado. Pediu apenas um acolchoado para proteger a queda no chão do estúdio e ali mesmo executou não uma, mas repetiu a cena várias vezes como costuma acontecer em filmagens. De tanto vê-lo atravessar o tempo passamos a aceitar sua imagem imutável como algo natural. Abrir um jornal tanto faz se em 1962, 1989, ou 2010, e dar com a cara de Pelé nos sorrindo era uma forma de saber que as coisas continuavam como sempre foram. Agora chegaram esses malditos 74 anos e logo alguém vem me dizer que Pelé mudou. Me afirmam que há algo de vago em seu olhar, o andar não é tão desenvolto, e o sorriso talvez não tão confiante.