Texto publicado em blog nos EUA tem falsidades já checadas sobre as eleições brasileiras

Argumentos são usados em vídeo viral que espalha tese infundada de fraude eleitoral

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Por Clarissa Pacheco
Atualização:

Um vídeo gravado para contestar o processo eleitoral brasileiro repercute argumentos falsos publicados em um texto opinativo nos Estados Unidos. Um blogueiro chama o conjunto de alegações de “a mais extensa e detalhada matéria jornalística internacional” sobre fraude nas eleições do Brasil. Apesar disso, apresenta uma série de alegações já desmentidas por veículos de imprensa e agências de checagem.

Card CL News Foto: Reprodução

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O principal argumento é o de que a regra de estatística conhecida como Lei de Benford apontou caminhos para indicar manipulação na apuração dos resultados (mais informações abaixo). Além disso, o texto lança mão de inverdades já desmentidas, inclusive antes da publicação original, para sustentar o argumento de que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e seus ministros manipularam intencionalmente o resultado do pleito para beneficiar Lula e prejudicar Bolsonaro.

Confira a checagem a seguir:

Lei de Benford

O principal argumento do texto é de que um consórcio internacional de analistas forenses – que quer se manter anônimo e não é identificado no texto – teria aplicado a Lei de Benford em auditorias nos dados do primeiro e do segundo turno das eleições brasileiras de 2022. A partir dela, eles teriam encontrado caminhos de investigação que apontaram “anomalias” e “inconsistências” nos dados.

O Projeto Comprova, do qual o Estadão Verifica faz parte, já mostrou em 2018 que a Lei de Benford não é capaz, por si só de apontar fraude, e que há uma longa bibliografia a respeito do tema questionando a confiabilidade do uso desta lei para analisar a integridade de eleições. A Lei de Benford é uma regra estatística descoberta nos anos 1930 pelo físico Frank Benford que aponta que, em número gerados de forma “natural”, os dígitos menores (1, 2, 3) tendem a aparecer com mais frequência do que os dígitos maiores (7, 8, 9).

Segundo a Lei de Benford, se há muitos números com os dígitos 9 aparecendo do que com o dígito 2, isso pode indicar alguma manipulação artificial. Na época, o Comprova mostrou que a regra não valia, contudo, para qualquer conjunto de dados. Em números de celular, por exemplo, é o número 9 que predomina, e isso não é um indício de fraude.

O argumento dos autores do conteúdo para dizer que há anomalias é que, no Nordeste, os números de votos associados a Lula são frequentemente de dígitos mais altos, enquanto no Sudeste, esses dígitos mais altos são menos frequentes quando se trata de votos computados para Bolsonaro. Mesmo fazendo essa observação, os supostos analistas forenses não afirmam categoricamente que houve fraude, e sim que isso é “quase impossível” do ponto de vista da estatística forense, o que o torna o resultado “estatisticamente questionável”.

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Em novembro do ano passado, pouco após o resultado do segundo turno das eleições, um time de especialistas de diversas áreas e instituições do Brasil publicou um artigo no Estadão afirmando que não, não há qualquer indicio de fraude nas eleições brasileiras de 2022. Eles analisaram os dados de votação e explicaram justamente que a Lei de Benford não prova qualquer fraude e que a aplicação da regra aos dados nem sequer apontou indícios de irregularidade.

“As análises de primeiro e segundo dígito da Lei de Newcomb-Benford não detectaram qualquer anomalia estatística nos dados; a técnica de último dígito também não identificou qualquer variação significativa; as distribuições de impressões digitais sugerem uma correlação livre e justa entre a taxa de comparecimento e a distribuição de votos do candidato vencedor; a estimativa de reamostragem da densidade de Kernel sugere que a proporção de urnas suspeitas é extremamente baixa e o modelo de mensuração eforensics não identifica qualquer padrão de desvio na contagem de votos”, diz o texto.

Urnas de modelos diferentes

Outra argumentação do texto é de que os votos para Jair Bolsonaro estão dentro do normal para as novas urnas eletrônicas, mas não para as de modelos mais antigos. Segundo o material, as urnas mais antigas não teriam certificação adequada, o que não é verdade. Esta é a base do argumento apresentado em um relatório do PL, partido de Bolsonaro, para tentar questionar o resultado do pleito, mas que foi desmontado por especialistas.

Nas eleições do ano passado, foram usadas urnas de modelos diferentes, mas todas receberam o mesmo código-fonte. A diferença é de as urnas do modelo UE2020 tinham um número de série individual, enquanto os modelos anteriores (UE 2009, UE 2010, UE 2011, UE 2013 e UE 2015) receberam um número de série único e inválido. O que se esperava é que, durante a operação da urna, esse número fosse lido pelo software e preenchido com um valor correto individual, mas isso não ocorreu nas urnas antigas. O bug fez com que todos os equipamentos desses modelos mantivessem o mesmo número inválido, 67305985. Isso significa que essas urnas perderam uma das formas de identificação, mas não todas.

O presidente nacional do Partido Liberal (PL), Valdemar Costa Neto, durante comunicado a imprensa, realizado na tarde de 22 de novembro de 2022. FOTO WILTON JUNIOR/ ESTADÃO Foto: Estadão

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Ainda no final de novembro do ano passado se espalhou a tese de que, sem um log individual, não era possível identificar as urnas nem conferir autenticidade, o que foi desmentido por especialistas e reafirmado em um relatório publicado em 14 de dezembro de 2022 pelo Laboratório de Arquitetura e Redes de Computadores (LARC), vinculado ao Departamento de Engenharia de Computação e Sistemas Digitais (PCS) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP).

Mais desinformação

Ao longo do texto, os autores recorrem a mais desinformação sobre eleições e política no Brasil. Uma das primeiras é uma alegação de que o ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, havia dito que “eleição não se ganha, se toma”. A frase foi retirada de contexto, contudo. Ela foi dita por Barroso durante uma conversa com o deputado Jhonatan de Jesus (Republicanos-RR), que lembrou uma conversa entre o magistrado e o senador Mecias de Jesus (Republicanos-RR) sobre como eram as eleições em Roraima no passado.

O próprio senador lamentou que a frase tenha sido tirada de contexto e explicou o que havia acontecido. Segundo a Agência Senado, Mecias disse em um pronunciamento que teve uma reunião com Barroso no dia 8 de junho de 2021 e narrou ao ministro que por duas vezes ganhara eleições em seu Estado por pouquíssimos votos. Com a recontagem de votos, porém, o resultado mudou e ele acabou por ficar na suplência. Mecias disse que as eleições foram “de fato, tomadas de mim”. Assim, o ministro teria dito que “eleição em Roraima não se ganha, se toma”. O senador esclareceu que assim se passava no tempo do voto impresso e que, com a implantação do voto eletrônico, ele finalmente obteve a vaga.

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Outra informação falaciosa que aparece no texto é de que não é possível fazer recontagem de votos nas eleições brasileiras realizadas por meio de urnas eletrônicas. De acordo com o TSE, as urnas eletrônicas usadas no Brasil possuem desde 2004 um dispositivo que permite fazer auditorias na votação e inclusive, recontar os votos. É o Registro Digital do Voto (RDV), através do qual “é emitida a zerésima (relatório que indica que a urna não possui votos registrados) e é gerado o boletim de urna (relatório com a apuração dos votos da seção)”. O voto é registrado exatamente como o eleitor o digitou e o sigilo é garantido.

O vídeo ainda engana ao afirmar que a diplomação de Lula como Presidente da República foi antecipada ilegalmente para o dia 12 de dezembro, o que não é verdade. A diplomação foi mesmo antecipada, mas isso não é ilegal. De acordo com a legislação brasileira, a diplomação pode acontecer a partir do momento em que o plenário do TSE aprova o relatório final de totalização dos votos do 2º turno, o que aconteceu em 6 de dezembro. O prazo final para a diplomação era dia 19 de dezembro, mas não significa que tinha que acontecer naquela data.

Há menções a supostas provas de fraude apresentadas pelo argentino Fernando Cerimedo, desmentidas pelo Verifica e pelo Comprova (aqui, aqui, aqui e aqui); alegações de que os militares foram ignorados pelo TSE em seu direito de fiscalizar as eleições, o que também não é verdade – a Defesa não apenas fiscalizou como apresentou relatório, sem ter encontrado indícios de fraude.

Por fim, o conteúdo ainda afirma que a ex-presidente Dilma Rousseff ocupou a presidência da República após Lula ser destituído do cargo, o que não tem o menor fundamento. Lula concluiu seus dois primeiros mandatos e foi sucedido por Dilma Rousseff após ela ser democraticamente eleita em 2010 e reeleita em 2014.

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