Em discurso durante ato pela anistia dos presos do 8 de Janeiro neste domingo, 6, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) repetiu a alegação falsa de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva teria dito que ladrões de celular só querem “tomar uma cervejinha”. O petista nunca afirmou isso. O boato já foi amplamente desmentido por diferentes agências de checagem, incluindo o Estadão Verifica (aqui e aqui).
O ex-presidente disse a apoiadores reunidos na Avenida Paulista, em São Paulo: “Eu não pude mostrar durante a propaganda eleitoral de 2022 o Lula falando que era legal roubar celular porque esses vagabundos queriam apenas tomar uma cervejinha”.
De fato, Bolsonaro foi impedido de veicular uma propaganda com este teor, justamente por ela conter a mentira da “cervejinha”. Em 13 de outubro de 2022, a ministra do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Maria Claudia Bucchianeri determinou a suspensão da transmissão da propaganda eleitoral com essa alegação.
Conforme a juíza, a fala atribuída a Lula por Bolsonaro “jamais existiu nesses termos, tratando-se, isso sim, de montagem, mediante a reunião de frases que foram ditas em momentos distintos e em contextos distintos”.
A decisão da magistrada, inclusive, cita a checagem do Estadão Verifica que desmentiu o boato da cervejinha, publicada em dezembro de 2021.
A assessoria de Bolsonaro foi procurada para comentar a checagem, mas não respondeu.

A alegação falsa começou a circular em 2020, quando uma entrevista antiga de Lula foi editada para parecer que o petista teria defendido o roubo de celulares “para tomar uma cervejinha”.
A entrevista verdadeira de Lula foi transmitida ao vivo, em 25 de agosto de 2017, na página do petista no Facebook, quando ele conversava com uma rádio universitária de Pernambuco.
Os trechos que foram utilizados aparecem em dois momentos distintos, a partir dos 13 minutos. Primeiro, Lula atribui a incidência de homicídios no Estado ao nível de pobreza: “É uma coisa que está intimamente ligada. Ou seja, o cidadão teve acesso a um bem material, a uma casinha, a um emprego, e de repente o cara perde tudo. Então, vira uma indústria de roubar celular. Para que ele rouba celular? Para vender, para ganhar um dinheirinho. Eu penso que essa violência que está em Pernambuco é causada pela desesperança.”
No segundo trecho, quando o raciocínio é outro, Lula comenta sobre o ódio na sociedade, usando como exemplo clubes de futebol: “É preciso distensionar para a sociedade perceber que a torcida do Santa Cruz e do Sport não são inimigas. São adversárias durante o jogo, depois vão para o bar tomar cerveja juntos”.
Veja outras ocasiões em que Bolsonaro repetiu a afirmação falsa:
- 29 de setembro de 2022 - durante o debate presidencial da TV Globo, Bolsonaro disse: “Lula defendia que se roubasse celular para tomar uma cervejinha”.
- 25 de novembro de 2024 - em entrevista coletiva após ser indiciado pela Polícia Federal sobre tentativa de golpe de Estado, afirmou: “(não podia mostrar as imagens do Lula) defendendo roubo celular para tomar uma cervejinha”.
- 10 de dezembro de 2024 - em transmissão ao vivo do canal AuriVerde Brasil, o ex-presidente alegou: “(eu não podia botar no ar uma imagem) do Lula defendendo roubar celular para tomar cervejinha”
- 26 de março de 2025 - após se tornar réu por golpe de Estado, Bolsonaro fez um pronunciamento à imprensa. Ao criticar o TSE, repetiu: “eu não pude mostrar imagens do Lula falando que o pobre coitado rouba um celular para tomar a cervejinha”.
Bolsonaro repete outras acusações falsas contra Lula
A mentira sobre a “cervejinha” de Lula não foi a única dita por Bolsonaro no discurso. O ex-presidente também afirmou que o adversário político teria sido tirado da cadeira por “um CEP errado”, mas não é bem assim.
Na realidade, as condenações do presidente na Operação Lava Jato foram anuladas no Supremo Tribunal Federal (STF) por dois motivos.
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O primeiro realmente tem a ver com “CEP errado”. O ministro Edson Fachin entendeu que o caso de Lula não deveria ter sido julgado na vara federal de Curitiba porque o processo deveria tramitar no local onde o suposto crime teria ocorrido. Neste caso, em Brasília.
O segundo motivo vem do entendimento que o juiz responsável pela condenação de Lula, Sérgio Moro, agiu de forma parcial. O vazamento de conversas entre Moro e os procuradores da Lava Jato, assim como o posterior envolvimento político do ex-juiz, contribuíram para a Segunda Turma do STF declarar a suspeição dele.

Outra mentira dita por Bolsonaro que já havia sido refutada anteriormente é a de que Lula teria se reunido com traficantes no Complexo do Alemão em 2022. Na realidade, o petista fez uma visita ao Complexo da Maré, conjunto de favelas no Rio de Janeiro, em 2022. Na ocasião, o então candidato se reuniu com lideranças comunitárias, e não traficantes, como sugeriu Bolsonaro em diferentes ocasiões.
O ex-presidente disse ainda que teria ficado inelegível apenas por se reunir com embaixadores. Mas isso também não é verdade.
Bolsonaro foi declarado inelegível em junho de 2023, sob acusação de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação. Em julho de 2022, ele se reuniu com 70 embaixadores estrangeiros no Palácio do Alvorada e disseminou desinformação sobre o sistema eleitoral, além de atacar ministros do Supremo Tribunal Federal.
Assim, Bolsonaro não ficou inelegível por apenas se reunir com embaixadores. Na realidade, a legislação eleitoral proíbe o uso da máquina pública e da estrutura do governo em benefício dos candidatos que buscam a reeleição.
Mais uma afirmação enganosa é a de que o TSE teria favorecido Lula ao fazer uma campanha para registrar o título de eleitores jovens. Bolsonaro disse que foram 4 milhões de novos títulos, mas, segundo o TSE, o País ganhou 2 milhões de novos eleitores com idades entre 16 e 18 anos.
O ex-presidente disse ainda que 75% desse eleitorado vota na esquerda, mas não há fontes que embasem esse número. A pesquisa Datafolha de intenção de voto divulgada na véspera do segundo turno de 2022 mostra outro cenário entre os jovens. Naquele momento, Lula tinha 50% das intenções de voto entre pessoas com idades de 16 a 24 anos, enquanto Bolsonaro somava 37%. Não foi investigado o recorte específico de 16 a 18 anos.
Ex-presidente engana sobre réus do 8 de Janeiro
Durante o discurso na Paulista, Bolsonaro disse que o Supremo formou maioria para condenar “a uma pena absurda” um pipoqueiro e um sorveteiro por golpe de Estado armado. Ele se referia a Carlos Antônio Eifler e Otoniel Francisco da Cruz, respectivamente.
No entanto, nenhum dos dois foi condenado por golpe de Estado. Na realidade, o STF formou maioria para condenar Carlos Antônio pelo crime de associação criminosa, com uma pena de um ano de prisão.
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O ministro e relator Alexandre de Moraes substituiu a reclusão por penas restritivas, que incluem prestação de serviços à comunidade, participação de um curso sobre “Democracia, Estado de Direito e Golpe de Estado” e proibição de usar redes sociais até a extinção da pena.
Carlos deve pagar 20 dias-multa, no valor de meio salário mínimo cada, correspondente ao valor vigente na época dos fatos. O valor indenizatório de R$ 5 milhões em danos morais coletivos também é cobrado.

Bolsonaro desinforma ao sugerir que o caso de Otoniel, o sorveteiro mencionado por ele, também envolve denúncia por golpe de Estado. Na realidade, ele é denunciado por “incitar, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas, ou delas contra os poderes constitucionais, as instituições civis ou a sociedade” e por associação criminosa.
O ex-presidente também exagerou o apoio popular à pauta da anistia. Ele disse que “a grande maioria do povo brasileiro entende as injustiças” e seria a favor do perdão aos envolvidos no 8 de Janeiro. Mas uma pesquisa Genial/Quaest divulgada neste domingo, 6, diz o contrário. Na verdade, 56% dos entrevistados afirmaram preferir que os acusados continuem presos.
O levantamento indica que 34% defendem o perdão aos envolvidos nos atos antidemocráticos. Desses, 18% alegam que eles não deveriam ter sido detidos desde o início, enquanto 16% consideram que os presos já passaram muito tempo em reclusão.
Outra afirmação enganosa sobre o 8 de Janeiro é a de que os condenados por tentativa de golpe de Estado jamais teriam pegado em armas. Essa afirmação de Bolsonaro desconsidera que foram encontradas armas brancas no dia da invasão às sedes dos Três Poderes.
No voto para tornar Bolsonaro réu, o ministro Flávio Dino destacou que houve apreensão de armas brancas e de armas improvisadas no 8 de Janeiro. Ele lembrou ainda que vários dos acusados de tentativa de golpe de Estado são militares, que costumam andar armados.
Vale destacar que, durante a invasão ao Planalto, participantes do movimento golpista roubaram armas não letais do Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Em operações posteriores ao 8 de Janeiro, a Polícia Federal apreendeu armas de fogo com suspeitos de financiar o movimento antidemocrático (1, 2, 3).
Exageros sobre gestão de Bolsonaro
Durante o discurso, Bolsonaro exaltou sua gestão e repetiu alegações enganosas sobre seus feitos como presidente. Ele disse que a informalidade teria se convertido em pleno emprego no período em que esteve no Planalto. No entanto, o ex-presidente omite que a taxa anual de informalidade em 2022, último ano de seu governo, foi de 39,4%.
Ele disse, ainda, que terminou o ano de 2022 com R$ 54 bilhões em caixa – o que é verdade. Foi a primeira vez desde 2013 que as contas do governo federal fecharam no azul. Mas a gestão de Bolsonaro também deixou R$ 255,2 bilhões de despesas contratadas e não pagas para 2023, conhecidas como Restos a Pagar (RAPs).
Bolsonaro voltou também a mentir sobre o Pix, alegando que seu governo teria sido responsável pela criação da ferramenta. Essa alegação é desmentida ao menos desde 2022 por diferentes agências de checagem, e o ex-mandatário já repetiu em diferentes ocasiões desde então.
Como mostrou o Projeto Comprova, coalizão da qual o Verifica faz parte, o Pix foi lançado durante o governo Bolsonaro, em novembro de 2020, mas começou a ser pensado ainda na gestão de Michel Temer (MDB), em 2018. Abordado sobre o modelo de pagamento pela primeira vez em 2020, o ex-presidente desconhecia o assunto e acreditava que o termo Pix era relacionado à aviação civil.