O que andam espalhando: carta da entidade internacional World Council for Health (Conselho Mundial para a Saúde) para o governo brasileiro pede a suspensão imediata de vacinas infantis da covid porque elas estariam contaminadas.
O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. A entidade citada é formada por organizações antivacina, dentre as quais uma brasileira já checada por espalhar desinformação. Não há provas de que as vacinas causem os problemas de saúde relatados no conteúdo checado. Os principais órgãos regulatórios do mundo, que têm legitimidade para intervir em políticas de saúde pública, continuam recomendando a vacinação contra a covid-19.
O Verifica tentou contato com os médicos que publicaram vídeos sobre a carta e com as organizações envolvidas no pedido de suspensão das vacinas infantis. Não houve resposta até a publicação.

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Entidade é formada por organizações que divulgam informações falsas sobre saúde
O conteúdo verificado se refere a uma carta publicada por um órgão chamado Conselho Mundial para a Saúde. Ele não é um órgão oficial, formado por voluntários e grupos negacionistas e antivacina de vários países. No Brasil, o único parceiro da entidade é a Associação Médicos Pela Vida (MPV). Seu presidente, o médico pernambucano Antônio Jordão, foi indiciado pela CPI da Covid no Senado por “desestimular medidas não farmacológicas como o uso de máscaras” e reforçar o uso de medicamentos ineficazes para tratar a doença.
O Conselho Mundial de Saúde já pediu o fim da imunização no passado, utilizando argumentos falsos ou enganosos. Em 2022, o Projeto Comprova analisou outra mensagem propagada pelo grupo, que mentia sobre a segurança das vacinas. A checagem explicou que é falso chamar as vacinas de experimentais porque elas passaram pelas três fases de estudos necessárias para atestar a eficácia e a segurança.
O Médicos pela Vida também foi tema de uma série de checagens. Durante a pandemia, o grupo fez propaganda de remédios como hidroxicloroquina e ivermectina, ambos ineficazes contra a covid-19. O grupo já foi desmentido ao espalhar os boatos de que miocardite e pericardite seriam causadas apenas pela vacina e não por covid-19, e que pessoas vacinadas teriam o dobro de chances de pegarem covid.
Carta divulga alarme falso sobre segurança dos imunizantes para crianças
Na carta divulgada pela entidade, o grupo pede o fim da obrigatoriedade da vacinação contra covid-19 em crianças. Ele afirma que a doença representa “risco insignificante” para bebês e crianças.
Dados baseados em evidências mostram que isso não é verdade. A população pediátrica é desproporcionalmente acometida pela covid-19, disse o presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade Brasileira de Pediatria, Renato Kfouri. No Brasil, depois da faixa dos 80 anos de idade, os menores de um ano são os mais internados por covid-19, em um empate com idosos com idades entre 60 a 80. Esse dado é confirmado pelo Ministério da Saúde.
A menção à carta do Conselho Mundial de Saúde tem viralizado nas redes sociais. A médica Raíssa Soares obteve mais de 40 mil curtidas, no Instagram, ao divulgar o documento. Ela também fez propaganda do livro “Pfizer Papers”, obra que apresenta uma série de informações distorcidas sobre o perfil de segurança dos imunizantes. O Comprova já checou a obra (leia aqui).
O médico Roberto Zeballos também viralizou ao divulgar o conteúdo da carta no Instagram. Ele disse que as vacinas contra a doença que utilizam a tecnologia de RNA mensageiro (RNAm) estariam contaminadas com uma substância que aumentaria o risco de desenvolver câncer. Também falou que a molécula da proteína spike, parte fundamental do funcionamento dessa tecnologia, levaria ao surgimento de doenças autoimunes. Nada disso é verdade, como explicamos mais abaixo.
O Verifica tentou contato com Raíssa Soares e Roberto Zeballos, mas não houve resposta até a publicação da checagem. Confira abaixo a checagem dos boatos divulgados sobre as vacinas da covid, segundo as evidências mais robustas.
Não há observação de risco aumentado de câncer nos vacinados
No vídeo checado, Zeballos diz que vários frascos do imunizante contra covid-19 estariam contaminados com “DNA, S 40″ e que isso estaria conectado a um aumento no risco de câncer. O infectologista e presidente da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), Alberto Chebabo, explicou que não há nenhuma descrição de “DNA S40″ na literatura médica. Segundo ele, é uma sigla inventada.
Chebabo ressaltou que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) supervisiona todos os produtos de saúde no Brasil e não encontrou em vacinas os problemas citados no vídeo.
“Não há nenhum relato, não há nenhuma detecção de contaminação de vacinas, principalmente de vacinas de covid acontecendo nem no Brasil, nem em nenhum outro lugar no mundo”, afirmou o infectologista.
A carta do Conselho Mundial para a Saúde, na verdade, menciona o vírus SV40. Médico virologista, professor titular da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Amilcar Tanuri explica que foi detectada uma quantidade ínfima de sequências de DNA relativas ao vírus na vacina da Pfizer. O professor afirma que a chance desse fragmento ter alguma atividade carcinogênica (relacionada a câncer) é muito baixa.
“Na avaliação pré-clínica da vacina da Pfizer, foram feitos vários estudos de teratogênese [estudo do impacto de uma droga ou proteína na formação do feto], carcinogênese em animais, e nunca a vacina deu nada positivo para esse tipo de evento”, completa.
O Estadão Verifica mostrou que não há comprovação de uma relação causal entre as vacinas de RNA mensageiro contra a covid-19 e casos de câncer e mortes. Especialistas disseram, à época, que o câncer é uma doença multifatorial e que muitas vezes se desenvolve ao longo de anos.
O que são as vacinas de RNAm?
O uso do RNA mensageiro é estudado desde meados da década de 1960 no combate a diversas doenças, como malária e ebola. O vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Renato Kfouri, explicou que a tecnologia do RNAm nas vacinas funciona como uma espécie de “receita” para que as células aprendam a combater ameaças ao organismo.
As vacinas contra covid-19 da Moderna e da Pfizer utilizam um RNA mensageiro modificado, encapsulado em partículas nano lipídicas. O objetivo desse tipo de imunizante é levar até as células humanas instruções para “ensiná-las” a produzir a proteína S (spike) do vírus SARS-CoV-2. Isso auxilia as células a reconhecerem a proteína spike e estimula a produção de anticorpos contra ela, o que previne a infecção.
A proteína spike é uma parte da estrutura da superfície do vírus, que o ajuda a se conectar às células humanas, espalhando a infecção.
A segurança das vacinas originais de mRNA está embasada em estudos clínicos e no monitoramento das mais de 10 bilhões de doses aplicadas em todo o mundo, segundo a SBIm. A Anvisa garante que a vacina da Pfizer, em uso no País, seguiu todas as etapas de avaliação de eficácia e segurança até serem aprovadas.
Risco de que a proteína spike cause doenças autoimunes é boato antigo
O Estadão Verifica mostrou, em 2021, que não há indícios de que vacinas contra a covid-19 possam causar doenças autoimunes. A checagem explicou que as doenças autoimunes ocorrem quando o sistema imunológico confunde células saudáveis com agentes invasores e passa a “atacar” o próprio corpo. Na época, o professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, Flávio Fonseca, explicou que a ideia por trás do boato seria que as vacinas de mRNA poderiam gerar anticorpos anti-RNA e criar a doença autoimune. Mas essa situação não foi identificada em nenhuma etapa do desenvolvimento das vacinas, segundo o especialista.
“As pessoas estão expostas o tempo todo a diferentes tipos de vírus, que têm RNA no genoma, e nem por isso desenvolvem a autoimunidade”, explicou Fonseca.
Segundo o médico virologista Amilcar Tanuri, a quantidade de proteína spike produzida por uma injeção da vacina é milhares de vezes menor do que na própria infecção pelo covid.
“Se a proteína spike dá autoimunidade, ela vai dar autoimunidade muito mais em quem for infectado, porque a quantidade de proteína produzida na injeção do mRNA é milhares de vezes menor”, afirmou.
Tanuri explicou que a exposição do corpo humano à proteína spike por meio das vacinas é muito transitória. Afinal, a proteína spike é eliminada do corpo após vacinação.
“Para ter efeito tóxico, precisa ter doses muito maiores e mais contínuas”, afirmou o professor. “Então eu não vejo essa essa ilação ter alguma base científica para afirmar que tenha algum efeito nesse nível”.