Vídeo engana ao ligar Lula a julgamento no STF sobre justificativa para demissões

Postagem no Instagram desinforma ao espalhar que Lula pretende acabar com demissão sem justa causa e bloquear acesso a seguro desemprego e FGTS; ação que tramita no Supremo não tem relação com a gestão atual e envolve tratado internacional

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Por Samuel Lima
Atualização:

Um vídeo nas redes sociais distorce o teor de uma ação que está sendo julgada no Supremo Tribunal Federal (STF), com o objetivo de alegar que o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) pretende proibir a demissão sem justa causa no Brasil e, consequentemente, dificultar o acesso a benefícios como seguro desemprego e Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). A informação é enganosa.

Governo não pretende proibir demissões sem justa causa no Brasil. Foto: Reprodução/Instagram Foto: Reprodução

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Na realidade, o que o STF está analisando é se o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) poderia ter revogado a adesão a um tratado da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1997. A norma da OIT estabelece que os países signatários devem exigir uma justificativa formal dos empregadores ao registrar demissões de funcionários.

Segundo três especialistas em Direito consultados pelo Estadão Verifica, essa medida não significa que as pessoas passariam a ser demitidas apenas por “justa causa”, modalidade de dispensa baseada em falta grave do empregado, segundo a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Em tese, os patrões poderiam alegar uma série de motivos, como dificuldades financeiras, análise de desempenho e outros.

O vídeo analisado pelo Estadão Verifica foi publicado por uma usuária do Instagram que se apresenta como uma maquiadora de Rio Verde (GO). “Estou vendo um monte de gente comemorando, achando o máximo que o novo governo está querendo que você só possa ser mandado embora do seu trabalho por justa causa”, desinforma.

O material insinua que o suposto objetivo do PT seria o de evitar que trabalhadores recebam benefícios como seguro-desemprego e FGTS. Porém, o caso está sendo julgado pelo STF, ou seja, pelo Poder Judiciário, desde 1997. Não há participação do governo Lula.

Além disso, a mulher alega que a gestão federal “vai acabar com o saque aniversário do FGTS”. Essa informação não está confirmada. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, declarou ao jornal O Globo que a administração federal pretendia encerrar a modalidade, mas depois recuou e afirmou no Twitter que a medida seria “objeto de amplo debate” com os gestores do fundo e as centrais sindicais.

O que diz a norma da OIT

Diferentemente do que circula nas redes sociais, a norma da OIT que pode ser retomada após julgamento no STF não estabelece que as demissões passariam a existir apenas por justa causa. A confusão está no artigo 4 da Convenção 158, que veta demissões de funcionários sem apresentar uma “causa justificada”.

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Não se dará término à relação de trabalho de um trabalhador a menos que exista para isso uma causa justificada relacionada com sua capacidade ou seu comportamento ou baseada nas necessidades de funcionamento da empresa, estabelecimento ou serviço.

Convenção 158 OIT - Art. 4

Em seguida, a OIT passa a listar justificativas não aceitáveis para o desligamento, como filiação a sindicato, apresentar uma queixa, cor/raça, sexo, estado civil, gravidez, religião, opiniões políticas, origem social ou por ausência de trabalho em licença-maternidade. Mas o próprio texto deixa claro que a rescisão do contrato de trabalho poderia se dar por “necessidades de funcionamento da empresa”, o que não configura exatamente demissão por justa causa na legislação brasileira.

De acordo com a CLT, a demissão por justa causa só pode ser feita se o funcionário cometer alguma conduta considerada “grave”, como ato de indisciplina ou de insubordinação, abandono do emprego, violação de segredo da empresa, embriaguez habitual ou em serviço ou prática constante de jogos de azar. O trabalhador demitido dessa forma perde alguns direitos, como indenização de 40% sobre o FGTS, aviso prévio e seguro-desemprego.

A advogada Silmara Monteiro Bernardo, especialista em Direito Trabalhista e sócia do escritório Viseu Advogados, explica que a OIT não determina que toda demissão deve ser feita por justa causa, e sim “quebra um pouco da informalidade” no momento de demitir o funcionário. Hoje, o patrão pode rescindir contratos sem dar nenhuma satisfação, se assim desejar.

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As razões a serem apresentadas, no entanto, podem ser várias: redução do quadro de funcionários por questões financeiras, possibilidade de outra pessoa absorver as mesmas funções, desempenho abaixo do esperado ou a posição não ser mais necessária na estrutura da empresa, por exemplo. “O que a OIT veda é a dispensa imotivada, ou seja, o empregador não pode dispensar sem dizer absolutamente nada”, afirma.

O advogado Eduardo Alcântara, sócio da área trabalhista do Demarest, afirma que o conceito é “muito aberto”. “O empregador pode justificar a demissão por perdas de clientes, de faturamento… Não se equipara à demissão por justa causa na CLT, em que existe uma quebra de confiança na relação de trabalho”, diz.

STF analisa se Brasil poderia ter deixado acordo da OIT por meio de decreto de FHC. Foto: TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO

O professor Fernando Peluso, coordenador do curso de Direito do Trabalho do Insper e sócio da Peluso, Stupp e Guaritá Advogados, acrescenta que um segundo aspecto trazido pela OIT diz respeito à possibilidade de defesa e eventual contestação das razões apresentadas pelo patrão, o que atualmente ocorre apenas nos casos em que de fato o funcionário é demitido por falta grave. “Não é que vai se acabar com a demissão sem justa causa, nos termos da CLT. Acontece que toda a demissão deve ter algum motivo”, afirma.

Entenda a ação no STF

O fato que causa confusão nas redes sociais se refere a um julgamento do Supremo Tribunal Federal que se arrasta desde 1997. Trata-se de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI 1625) apresentada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag).

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Em 1992, o Congresso aprovou a adesão à Convenção 158 da OIT. A entrada foi oficializada em 1996, com a promulgação do decreto legislativo pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Poucos meses depois, o governo recuou e assinou um novo decreto “denunciando” a norma, ou seja, anunciando que o País deixaria de ser signatário. No processo que corre no Supremo, a Contag argumenta que o presidente não teria competência para revogar a ratificação do tratado internacional sem votação prévia no Congresso que autorizasse a medida.

O caso se arrastou na Corte em razão de diversos pedidos de vista, nome técnico para quando um ministro pede mais tempo para análise e interrompe o julgamento. Até agora, oito ministros apresentaram seus votos — entre eles magistrados aposentados, o que faz com que ministros que ocupam as suas respectivas cadeiras estejam impedidos de julgar a ação.

O relator original, ministro Maurício Corrêa, propôs que o decreto de FHC só deveria produzir efeitos a partir da ratificação pelo Congresso Nacional. Ou seja, ficaria com os parlamentares a palavra final sobre o Brasil deixar ou não o tratado. Outro ex-ministro, Carlos Ayres Britto acompanhou o relator.

Os demais ministros discordaram. Joaquim Barbosa julgou que o decreto é inconstitucional e deve ser anulado, porque o Congresso deveria ter sido consultado antes. Rosa Weber abriu uma divergência no mesmo sentido, e Ricardo Lewandowski acompanhou a ministra.

Ministros devem concluir ainda este ano julgamento sobre justificativas de demissões. Foto: Carlos Moura/STF

O ex-ministro Nelson Jobim, por outro lado, entendeu que o presidente pode realizar a ação porque, ao vincular o Brasil a um tratado internacional, é necessário que tanto o Executivo quanto o Legislativo, juntos, concordem com essa medida. Para o ministro, o decreto é válido.

Teori Zavascki e Dias Toffoli entenderam que o procedimento adotado não foi correto e que o presidente deveria ter consultado o Congresso antes de revogar o tratado, mas defendem que o decreto deve ser preservado. Para Zavascki, a exigência passaria a valer após o julgamento, enquanto Toffoli pede que os parlamentares determinem essa chancela através das leis.

Em resumo, três ministros defenderam a anulação do decreto (Joaquim Barbosa, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski), outros três entenderam que ele deve ser mantido (Nelson Jobim, Teori Zavascki e Dias Toffoli) e dois optaram para que o Congresso tenha a palavra final sobre o assunto (Maurício Corrêa e Ayres Britto).

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A ação aguarda o voto de Gilmar Mendes, que pediu vista. Nunes Marques e André Mendonça estão na fila. O placar ainda pode ser alterado se algum ministro mudar de voto.

A expectativa é que o julgamento seja concluído neste ano, em razão de uma nova emenda ao regimento interno do STF que estabelece prazo de 90 dias para os pedidos de vista. Depois disso, os autos são liberados automaticamente para o prosseguimento dos votos dos demais.

Mesmo que o decreto seja derrubado e o Brasil retome a adesão à convenção 158 da OIT, especialistas acreditam que as regras dependeriam de regulamentação por meio de uma lei específica a ser aprovada pelo Congresso. O assunto não está em pauta atualmente no Legislativo.

O Estadão enviou uma mensagem ao perfil responsável pela publicação do conteúdo, indagando qual seria a fonte das alegações falsas apresentadas no vídeo, mas não recebeu resposta.

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