Entenda o que é ‘desordem informacional’, termo usado por Lewandowski e pela USAID

Postagens alegam falsamente que expressão foi criada pela agência americana; na verdade, conceito foi cunhado por pesquisadores que estudam desinformação

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Foto do author Gabriel Belic

Em outubro de 2022, o então ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Ricardo Lewandowski votou para derrubar um vídeo intitulado “Relembre os esquemas do governo Lula”, produzido pela empresa Brasil Paralelo. O magistrado classificou como grave a “desordem informacional” do conteúdo. Nas redes sociais, postagens virais alegam que o termo usado pelo ministro teria sido criado pela Agência de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (USAID) em 2021. O conceito, no entanto, foi criado anos antes disso, por pesquisadores que propuseram uma alternativa ao termo fake news. Entenda abaixo.

Entenda o que é ‘desordem informacional’, termo usado por Lewandowski e pela USAID Foto: MclittleStock/Adobe Stock

O que é ‘desordem informacional’?

O termo foi criado em 2017, quando os pesquisadores Claire Wardle e Hossein Derakshan escreveram um relatório para o Conselho da Europa (leia aqui). Ao Verifica, Wardle contou que o conceito foi cunhado para explicar as características prejudiciais dos ecossistemas de informação contemporâneos aos legisladores e formuladores de políticas.

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No início do relatório, os pesquisadores defendem não utilizar o termo "fake news" por duas razões. Primeiro, porque consideram o conceito inadequado para descrever a complexidade da poluição da informação. Em segundo lugar, explicam que o termo foi apropriado por políticos para descrever veículos de imprensa cuja cobertura eles consideram desagradável.

Por estes motivos, Wardle e Derakshan apresentaram uma nova estrutura para examinar a desordem informacional. Eles identificaram três tipos diferentes, abordando as dimensões de danos e falsidade. Veja abaixo.

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  • Mis-information (informação errada): trata-se do compartilhamento de informações falsas, mas sem intenção de causar dano;
  • Dis-information (desinformação): quando informações falsas são espalhadas de forma consciente para causar dano;
  • Mal-information (má informação): é o compartilhamento de informações verdadeiras para causar dano. Muitas vezes, as informações movidas deveriam ser privadas para o domínio público.

O documento do Conselho da Europa cita sete categorias de mis-information e dis-information criadas por Wardle no artigo “Fake News. It’s Complicated” (Fake News. É complicado). As categorias descrevem um campo amplo de conteúdo problemático online, desde a sátira até o material completamente fabricado.

Os sete tipos de informação problemática foram explicadas pelo Estadão Verifica em 2020. A escala envolve os seguintes tipos de conteúdos:

  • Conteúdo fabricado: 100% inventado, produzido para enganar e prejudicar;
  • Conteúdo manipulado: usa imagens e informações autênticas de forma alterada com intuito de enganar;
  • Conteúdo impostor: imitação de fontes genuínas;
  • Falso contexto: conteúdo autêntico inserido em dados contextuais falsos;
  • Conteúdo enganoso: distorção de informações para favorecer um indivíduo ou assunto;
  • Falsa conexão: quando manchetes, imagens ou legendas não são compatíveis com o conteúdo;
  • Sátira ou paródia: conteúdo humorístico, sem intenção de dano, mas com potencial para enganar.

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O relatório também chama atenção para três elementos da desordem da informação: o agente, a mensagem e o intérprete. Para examinar o conteúdo, os especialistas recomendam questionamentos para cada elemento envolvido:

  • Agente: quem foram os responsáveis por criar, produzir e distribuir o conteúdo? Qual era a motivação deles?
  • Mensagem: qual era o tipo de mensagem? Em qual formato ela estava? Quais eram suas características?
  • Intérprete: como a mensagem foi interpretada pelo receptor? Qual ação foi tomada após isso?

Conforme o documento, outra estrutura conceitual importante para entender a desordem informacional são as três fases de desenvolvimento de um conteúdo desinformativo. Elas são divididas em criação, produção e distribuição. Veja abaixo.

  • Criação: a mensagem é criada;
  • Produção: a mensagem é transformada produto midiático;
  • Distribuição: a mensagem é distribuída ou tornada pública.

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À reportagem, Wardle explicou que, para além do conteúdo danoso, o relatório também aborda questões como algoritmos e coleta massiva de dados. “Eu queria encontrar um termo que descrevesse uma série de questões diferentes, embora, admitidamente, o relatório seja conhecido por se concentrar em informações enganosas”, disse.

Como resultado, de acordo com a pesquisadora, o conceito de desordem informacional foi utilizado por diferentes agências governamentais e da Organização das Nações Unidas (ONU) ao discutir questões relacionadas à desinformação.

Lewandowski usou termo em 2022

Em 13 de outubro de 2022, o TSE decidiu, por 4 votos a 3, ordenar a remoção de um vídeo publicado pela produtora Brasil Paralelo. O conteúdo, intitulado “Relembre os esquemas do governo Lula”, usava reportagens antigas de casos de corrupção para associar ao então candidato à Presidência pelo PT.

O pedido para retirada do vídeo foi feito pela coligação Brasil da Esperança, de Lula. À época, o então vice-presidente da Corte Eleitoral, Ricardo Lewandowski, entendeu que o material promovia “desordem informacional”.

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“Ao apresentar as reportagens jornalísticas sob o título ‘Relembre os esquemas do governo Lula’, a matéria atribui ao candidato Lula uma série de escândalos de corrupção que jamais foram judicialmente imputados a ele e a respeito dos quais, por conseguinte, nunca teve a oportunidade de exercer sua defesa”, defendeu o magistrado. “Nesse sentido, considero grave a desordem informacional apresentada e, como tal, apta a comprometer a autodeterminação coletiva, a livre expressão, a livre formação da vontade do eleitor”.

Acompanharam o voto de Lewandowski os ministros Benedito Gonçalves, Cármen Lúcia e o então presidente do TSE, Alexandre de Moraes. Moraes pontuou a “manipulação de premissas verdadeiras”, que resulta em uma “conclusão falsa”.

A produtora reagiu à decisão alegando que o “julgamento abrangente” cria um “viés subjetivo que estimula censura”. A Brasil Paralelo disse, ainda, que alguns argumentos “chegam a colocar que o problema não são informações falsas, mas sim informações verdadeiras que criam uma ‘desordem informacional’”.

Uso do termo pela USAID

Em fevereiro de 2021, a USAID lançou um guia de desinformação (leia aqui) com intuito de auxiliar os funcionários e parceiros da agência a entender seus fundamentos e conceitos. O manual explica como e por que a desinformação é espalhada, além de analisar como programas podem auxiliar a reduzir seu impacto prejudicial.

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O documento faz diversas referências ao conceito desordem informacional, apresentado como uma alternativa ao termo fake news. Por este motivo, postagens nas redes sociais atribuem a criação da expressão à USAID. As publicações omitem, contudo, que o próprio relatório aponta a pesquisadora Claire Wardle como autora do conceito.

“Embora a desinformação tenha se tornado um tema controverso ao longo dos últimos anos, a manipulação da mídia tem sido usada como uma tática política no passado e de forma alguma é um fenômeno novo. Desordem da informação, um termo cunhado por Claire Wardle, uma especialista em desinformação e informação falsa e cofundadora do First Draft, refere-se ao atual clima midiático e às maneiras pelas quais o ecossistema midiático está poluído”, escreve o relatório na página 7.

A First Draft é uma das entidades fundadoras do Projeto Comprova, coalizão de veículos de imprensa do qual o Estadão Verifica faz parte.

Alegações alimentam teoria conspiratória

Postagens virais que resgatam o discurso de Lewandowski e o associam ao relatório produzido pela USAID fomentam uma campanha de desinformação em andamento nas redes sociais. Como explicou o Estadão Verifica, a agência americana virou alvo de peças conspiratórias desde que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, começou a atacá-la.

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O bilionário Elon Musk, que agora lidera o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE) do governo americano, chamou a USAID de “organização criminosa”, enquanto Trump afirmou que a organização de assistência humanitária é “administrada por lunáticos radicais de esquerda”. No Brasil, a onda desinformativa alega, sem provas, que a USAID teria interferido no resultado eleitoral de 2022.