É falso que Dilma tenha confessado em vídeo que participou de luta armada contra ditadura

Conteúdo foi editado e circula na internet desde 2010; na fala original, ex-presidente diz que nunca teve pegou em armas durante militância

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Atualização:

O que estão compartilhando: que a ex-presidente Dilma Rousseff (PT) teria confessado em vídeo que teve participação na luta armada contra a ditadura militar no Brasil.

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O Estadão Verifica investigou e concluiu que: é falso. O vídeo foi editado para parecer que Dilma disse: “Eu, especificamente, tive uma participação armada”. Mas o que a ex-presidente falou, na verdade, foi o contrário: “Não tive nenhuma participação armada”.

A fala foi retirada de uma entrevista concedida por ela em fevereiro de 2010, durante o 4º Congresso Nacional do PT, quando a então ministra da Casa Civil foi oficializada como pré-candidata pelo partido à Presidência da República. Naquele mesmo ano, começou a circular a versão falsa em que Dilma parece dizer ter participado da luta armada.

Dilma foi presa em 1970 por subversão, porque militava em organizações de esquerda. Na época, ela tinha 19 anos e foi torturada, como declarou em outros momentos. Grupos dos quais ela participou defendiam a luta armada, mas não há nenhuma prova de que a ex-presidente tenha se envolvido diretamente com ações do tipo.

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 Foto: Reprodução/TikTok

Saiba mais: O autor do vídeo publicado no TikTok questiona por que ninguém está comentando sobre um determinado vídeo em que, segundo ele, Dilma assumiria ter participado da luta armada contra o regime militar. Só nessa rede social são mais de 15 mil curtidas.

O trecho editado para fazer parecer que Dilma confessou “uma participação armada” aparece em um vídeo maior, publicado em setembro de 2010 pelo vereador do Rio Carlos Bolsonaro (PL), um dos filhos do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). No YouTube, a publicação de Carlos tem 1,9 milhão de visualizações.

O vídeo completo criticava o fato de Dilma dizer que não se envergonhava de sua militância contra a ditadura militar e apontava diferenças entre ela e Bolsonaro.

A postagem de Carlos, em específico, mostra outras falas de Dilma na mesma ocasião: em uma, ela diz que alguns de seus companheiros realmente participaram da luta armada; em outro, ela diz que entende perfeitamente esses companheiros; por fim, diz que se orgulha de sua militância e que não renega nenhum de seus atos.

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O Verifica tentou contato com Carlos Bolsonaro, mas não obteve retorno. O PT também foi procurado, mas não respondeu até a publicação deste texto.

Vídeo original é de fevereiro de 2010

Para localizar a fala original, o Verifica fez uma busca reversa (veja como usar aqui) de frames do vídeo investigado. A ferramenta levou a publicações que reproduziam o vídeo publicado em setembro de 2010 por Carlos Bolsonaro. Em seguida, foram pesquisadas as frases exatas supostamente ditas por Dilma no vídeo, mas nenhuma delas foi localizada com exatidão.

Como o vídeo mais antigo encontrado era de setembro de 2010, o Verifica usou ferramentas de inteligência artificial, como o ChatGPT, para pesquisar em que momento, anterior a esta data, Dilma Rousseff teria dito as palavras que aparecem no vídeo. A ferramenta indicou que Dilma havia feito declarações parecidas em 2010, quando era pré-candidata à Presidência.

A partir dessa informação, foram buscados vídeos de discursos ou entrevistas coletivas a partir da confirmação dela como pré-candidata, em fevereiro de 2010. Isso levou a outros conteúdos que mostravam a petista usando a mesma roupa, o mesmo par de brincos e o mesmo corte de cabelo do vídeo editado. Esses outros conteúdos são do evento de aclamação da pré-candidatura, em 20 de fevereiro daquele ano.

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Apesar de não ter localizado o vídeo com a íntegra das declarações de Dilma, o Verifica localizou trechos das falas. Um deles aparece na edição do programa Conexão Repórter, do SBT, de 30 de março de 2011. Na época, o jornalista Roberto Cabrini entrevistou um dos agentes da ditadura, João Lucena Leal, que contou ter participado da operação para prender Dilma, em 1970.

No trecho usado na reportagem, a ex-presidente afirma:

“Não tive nenhuma participação armada. Tanto é assim que ninguém aqui acredita que hoje… Qualquer órgão de repressão sabia bastante da vida da gente, eu quero dizer pra vocês, até porque os métodos de interrogatório eram a tortura, como vocês sabem. Então, eu fui condenada a seis [anos de prisão] e o Supremo Tribunal Militar me reduziu a pena para dois anos. Uma pessoa com ação armada não tinha a pena caída para dois anos”.

Nessas imagens, é possível ver claramente o momento em que Dilma diz que não teve nenhuma participação na luta armada. No momento em que diz isso, a então pré-candidata à Presidência passa um lenço branco de tecido da mão direita para a esquerda repetidamente e depois o coloca sobre a mesa, à sua esquerda.

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O gesto é idêntico ao que aparece no vídeo editado.

Em vídeo exibido no Conexão Repórter de 2011, Dilma segura lenço com a mão esquerda quando diz que nunca participou da luta armada na ditadura Foto: Reprodução
No vídeo editado, momento em que Dilma Rousseff segura lenço com a mão esquerda coincide com as palavras "luta armada" Foto: Reprodução

O vídeo completo do Conexão Repórter daquele dia não está disponível no canal do programa no YouTube. Porém, foi disponibilizado por uma outra conta com o nome da novela Amor e Revolução, exibida pelo SBT na mesma época e que tratava do tema da ditadura. O áudio não está sincronizado com a imagem, mas o trecho específico da declaração de Dilma aparece nesta outra publicação, que mostra imagens do programa de reportagens.

Corte no vídeo engana quem assiste

As imagens do vídeo com a declaração editada não têm uma boa qualidade, o que dificulta a percepção de um corte na fala. No entanto, é perceptível um corte entre o momento em que Dilma enxuga o rosto com o lenço branco e diz “eu, particularmente”, e quando ela completa “tive uma participação armada”.

Outro indício de montagem é que, no vídeo investigado, Dilma aparece enxugando o rosto com o lenço branco antes de falar sobre luta armada. O vídeo usado pela reportagem do SBT não mostra essa imagem, e sim ela limpando as mãos com o lenço antes de depositá-lo na mesa. Isso indica que ela enxugou o rosto em outro momento, possivelmente alguns instantes antes de limpar as mãos e deixar o tecido sobre a mesa.

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No vídeo publicado por Carlos Bolsonaro, há outro trecho em que Dilma fala sobre os companheiros que atuaram na luta armada: “Vários companheiros meus, várias pessoas que eu respeito, tiveram, praticaram uma série de atividades, incluindo atividades armadas”.

É possível que este trecho anteceda a declaração da petista sobre ela própria nunca ter atuado na luta armada contra a ditadura, uma vez, logo após dizer isso, ela recebe um lenço branco nas mãos. O vídeo editado começa com ela limpando o rosto.

Em outro momento de vídeo divulgado em 2010, Dilma aparece pegando um lenço com a mão logo após dizer que alguns de seus companheiros participaram, sim, da luta armada Foto: Reprodução
No vídeo editado, Dilma aparece com um lenço no rosto quando fala sobre atuação, mas cena não se repete no vídeo original Foto: Reprodução

Dilma Rousseff foi presa por subversão

De acordo com informações do projeto Memórias da Ditadura, mantido pelo Instituto Vladimir Herzog, Dilma iniciou a militância política contra a ditadura militar já em 1964, quando integrou a Organização Revolucionária Marxista – Política Operária (Polop). Depois, ela passou a militar no Comando de Libertação Nacional (Colina), que era adepto da luta armada.

Anos mais tarde, em 1969, o Colina se fundiu à Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), formando a VAR Palmares. No entanto, Dilma e seus companheiros de militância sempre negaram que ela, especificamente, tenha participado da luta armada contra a ditadura.

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O relatório divulgado pela Comissão Municipal da Verdade de Juiz de Fora, uma das cidades onde ela foi torturada em 1970, aponta que Dilma foi processada com base em dois artigos da legislação sobre crimes contra a segurança nacional.

O artigo 36 considera crime: “Fundar ou manter, sem permissão legal, organizações de tipo militar, seja qual for o motivo ou pretexto, assim como tentar reorganizar partido político cujo registro tenha sido cassado ou fazer funcionar partido sem o respectivo registro ou, ainda associação dissolvida legalmente, ou cujo funcionamento tenha sido suspenso”.

Já o artigo 38 trata dos casos de subversão:

  • a publicação ou divulgação de notícias ou declaração;
  • a distribuição de jornal, boletim ou panfleto;
  • o aliciamento de pessoas nos locais de trabalho ou de ensino;
  • comício, reunião pública, desfile ou passeata;
  • a greve proibida;
  • a injúria, calúnia ou difamação, quando o ofendido for órgão ou entidade que exerça autoridade pública, ou funcionário em razão de suas atribuições;
  • a manifestação de solidariedade a qualquer dos atos previstos nos itens anteriores.

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Ela foi condenada a seis anos e um mês de prisão e teve os direitos políticos cassados por dez anos, mas teve a pena reduzida para dois anos pelo Superior Tribunal Militar (STM) e saiu da prisão em 1972.

Em depoimento ao Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), feito em 2001, Dilma falou sobre as torturas sofridas em Juiz de Fora: “Intercalavam, ao longo do dia, pau-de-arara, afogamento, choques elétricos, palmatória, pau-de-arara, num rodízio infernal e, em alguns momentos o horror da simultaneidade de todas essas sevícias”.

A ex-presidente contou que também passou por torturas psicológicas, como interrupção do sono com o aviso de que “dali a mais alguns minutos ou horas, começaria nova sessão de torturas, ameaças de morte ou de dano físico deformador”.

“Já os longos períodos de nudez a que me submeteram juntamente com a privação de alimentos tinham por objetivo quebrar a minha moral e minar minha resistência física”, disse Dilma.

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Outro trecho de fala de Dilma que aparece no vídeo do TikTok mostra a ex-presidente falando sobre as torturas sofridas durante a ditadura. Trata-se de parte de uma depoimento dela em 7 de maio de 2008 no Senado Federal, quando era ministra da Casa Civil, e participava de uma audiência sobre um caso de um dossiê sobre gastos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.

Na época, o senador Agripino Maia (DEM-RN) citou uma entrevista em que Dilma disse ter mentido sob tortura e que, naquele momento, também poderia estar mentindo sobre o dossiê. Ela respondeu dizendo que “mentir sob tortura não é fácil”.