Atualizada no dia 25 de março para incluir posicionamento da editora responsável pela publicação da pesquisa.
O que estão compartilhando: que um estudo da Universidade de São Paulo (USP) revelou que as máscaras foram ineficazes e que sua utilização pode ter contribuído para aumentar o número de mortes durante a pandemia da covid-19.
O Estadão Verifica apurou e concluiu que: é enganoso. O estudo em questão foi feito com o método observacional. Segundo os próprios autores, essa abordagem não permite inferir uma relação de causa e efeito entre o uso de máscaras e o excesso de mortes na pandemia. Especialistas ouvidos pelo Verifica apontaram outras limitações na pesquisa, como o fato de que não se sabe que tipo de máscara era usado e se o uso era correto.
Em nota, a diretoria do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (ICB-USP) afirmou que “o fato de um docente ter assinado um artigo científico não significa que a instituição endosse ou compartilhe integralmente as conclusões apresentadas”. A universidade ressalta que há muitas pesquisas científicas que indicam que o uso de máscaras foi, sim, importante para a redução na transmissão da covid.
Procurada, a editora responsável pela publicação do estudo informou que, após ter sido alertada por um leitor, está analisando o artigo seguindo “um processo estabelecido e em conformidade com as melhores práticas do Comitê de Ética em Publicações (COPE)”. A editora da revista científica BMC Public Health comunicou ainda que adicionou uma Nota do Editor à pesquisa da USP, para alertar aos leitores que “possíveis preocupações foram levantadas sobre o artigo”.
A nota foi acrescentada à pesquisa nesta terça-feira, 25. Ela afirma que “a confiabilidade dos dados relatados neste artigo está atualmente em disputa” e comunica que “ações editoriais apropriadas serão tomadas assim que este assunto for resolvido”.

Saiba mais: O estudo em questão é intitulado Does mask usage correlate with excess mortality? Findings from 24 European countries (“O uso de máscaras está correlacionado com a mortalidade excessiva? Achados em 24 países europeus”, em português). Ele foi publicado na revista BMC Public Health, no dia 12, assinado por dois pesquisadores da USP, Beny Spira, do Departamento de Microbiologia, e Daniel V. Tausk, do Departamento de Matemática.
O estudo analisou dados de 24 países europeus, referentes aos anos de 2020 e 2021, e concluiu que as máscaras não reduziram a transmissão da covid-19 e que seu uso está significativamente associado a uma mortalidade excessiva.
Método do estudo não serve para determinar eficácia de uso de máscaras
O estudo usa o método observacional, o que quer dizer que os pesquisadores apenas analisam dados já existentes. Eles não interferem nem controlam as amostras analisadas.
O diretor do Instituto Questão de Ciência, Carlos Orsi, disse que estudos observacionais são incapazes de demonstrar relação de causa e efeito. Ele explica que, mesmo que os pesquisadores tenham detectado que duas coisas evoluem juntas ao longo do tempo, essa correlação pode ser fruto de coincidência ou de uma causa externa não detectada.
De acordo com Orsi, algumas correlações podem indicar que uma relação causal é provável e deve ser investigada com métodos mais precisos. Não é o caso do estudo da USP, segundo ele.
“No caso do excesso de mortalidade e uso de máscaras, a ligação nem chega a ser sugestiva: não existe uma razão física ou biológica para que as máscaras façam mal; os autores não controlaram para fatores importantes que impactam a mortalidade, como disponibilidade de leitos de UTI nos países avaliados; e a medida de uso de máscaras foi autodeclarada: o dado empregado não foi quantas pessoas usavam máscara, mas quantas pessoas diziam usar máscara”, afirmou.
O Comprova explicou em 2020 naquela época que o método científico considerado mais confiável é o ensaio clínico randomizado controlado. Para realizá-lo, os pesquisadores recrutam um grupo de participantes voluntários, realizam uma intervenção (como por exemplo, usar máscaras) e acompanham os efeitos por meses.
Nesse modelo, é importante que exista também um grupo de controle, que não vai receber a intervenção, para que seja possível fazer uma comparação entre os resultados dos diferentes grupos.
No estudo dos pesquisadores da USP, o próprio texto afirma, em pelo menos três trechos, que a metodologia observacional utilizada não permite traçar relação de causalidade entre o uso de máscaras e o excesso de mortalidade por covid. Ou seja, os dados observados não podem ser interpretados como prova de uma relação de causa e efeito.
Na seção “Discussão”, os autores escrevem: “Uma limitação principal deste estudo é seu desenho observacional retrospectivo, que, como mencionado anteriormente, não pode inferir causalidade.”
A Diretoria do Instituto de Ciências Biomédicas da USP (ICB-USP) afirmou, em nota, que há muitas evidências em pesquisas científicas de que o uso de máscaras ajudou a reduzir a transmissão da covid.
“A ampla maioria dos estudos científicos, incluindo metanálises de alto impacto publicadas em periódicos de referência e revisões de instituições reconhecidas mundialmente, aponta que o uso de máscaras foi uma ferramenta importante na redução da transmissão do SARS-CoV-2, especialmente em ambientes fechados e de alta exposição”, comunicou.
Um exemplo de estudo que provou a efetividade do uso de máscaras é de pesquisadores da própria USP - trata-se de uma análise publicada na revista Aerosol Science & Technology em 2020.

Dados analisados têm limitações; outros fatores podem ter contribuído para o excesso de mortalidade
No estudo, os dados sobre uso de máscaras foram obtidos pelos pesquisadores no site do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde, da Universidade de Washington. A taxa de uso de máscaras é obtida a partir da autodeclaração de pessoas, que afirmaram sempre usar o equipamento de proteção ao sair de casa.
A biomédica Mellanie Fontes-Dutra explica que a autodeclaração é uma das limitações da pesquisa. “Não sabemos que tipo de máscara essas pessoas usavam e como as usavam”, afirmou.
É importante lembrar que a eficácia da máscara contra a transmissão da covid varia conforme o modelo. As máscaras de pano, por exemplo, protegem menos, enquanto as cirúrgicas e as do tipo N95 são mais eficazes.
Mellanie aponta que o estudo não considera outros fatores que podem ter contribuído para a diferença na mortalidade entre os países. Durante a pandemia, cada nação adotou políticas diferentes quanto ao uso de máscaras; além disso, outros parâmetros, como a gravidade das ondas de infecção por covid, foram diferentes em cada lugar.
O pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Minas Gabriel da Rocha Fernandes é especialista em análise de dados biológicos de experimentos clínicos. Ele retrabalhou os dados disponíveis no estudo da USP e chegou a conclusões diferentes das descritas pelos pesquisadores.
Segundo ele, os autores focaram desproporcionalmente na relação entre uso de máscaras e excesso de mortalidade, ignorando outras correlações potencialmente relevantes.
“A análise revela que o excesso de mortalidade está fortemente associado a fatores socioeconômicos, como PIB per capita, IDH e vacinação, com uma associação mais fraca e potencialmente aleatória com o uso de máscaras”, apontou Fernandes.
Ao Verifica, Beny Spira, um dos autores do estudo, disse que não abordar o tipo de máscaras não é um erro, mas sim uma limitação. “Nós utilizamos dados públicos, acessíveis por qualquer pessoa, que não traziam essa informação”, afirmou o pesquisador.
Ele acrescentou que houve uma correlação negativa entre o nível de vacinação e a mortalidade em excesso. Ou seja, quanto maior o índice de vacinação, menor a taxa de mortalidade.

Especialistas discordam de interpretação de dados feita no estudo
Os autores escrevem que as principais conclusões do estudo são duas: as máscaras não reduziram a transmissão da covid-19 e o seu uso está significativamente associado a uma mortalidade excessiva pela doença.
Os pesquisadores da USP levantam a hipótese de que o uso de máscaras “pode levar ao aumento da mortalidade em pacientes com covid-19 ao promover a reinalação de vírions, potencialmente piorando o prognóstico do paciente”. Vírions são partículas virais.
Porém, na frase seguinte, os autores anotam que “até o momento, não há dados experimentais que confirmem esse mecanismo”. Logo na sequência, o estudo destaca que há evidências de efeitos adversos no uso de máscaras, mas nenhum deles é severo ao ponto de causar mortes.
O coordenador da Rede Análise, Isaac Schrarstzhaupt, doutorando em Epidemiologia pela Faculdade de Saúde Pública da USP, questiona as hipóteses levantadas pelos pesquisadores.
“Do ponto de vista científico, é normal um estudo levantar hipóteses”, disse Schrarstzhaupt. “Só que quando é uma hipótese que vai totalmente contra tudo que é plausível, a meu ver incorre em um problema ético”.
O pesquisador prossegue:
“Imagina se alguém faz um estudo que acha uma correlação entre lavar as mãos e o aumento de doenças”, exemplificou. “O pesquisador deveria, então, buscar tudo que é possível para explicar essa correlação. É muito provável que tenha uma confusão e que a aposta não seja válida”.
No próprio estudo da USP, os autores escrevem sobre a possibilidade de que fatores não analisados estejam impulsionando a correlação entre o uso de máscaras e a mortalidade excessiva. “É uma limitação inerente a todos os estudos observacionais e uma razão chave pela qual este tipo de estudo não pode estabelecer causalidade”, afirma o texto.
A infectologista e epidemiologista Luana Araújo critica a postura dos autores no estudo. “Apesar de eles dizerem que não podem traçar relação de causalidade, eles não agem como tal”, disse. “Eles chegam, por exemplo, a discutir como as máscaras contribuiriam para um desfecho negativo. Se torna algo praticamente ficcional”.
O pesquisador da Fiocruz Minas Gabriel da Rocha Fernandes também destaca que a discussão no artigo frequentemente insinua uma causalidade entre o uso de máscaras e o aumento da mortalidade, apesar de os autores reconhecerem que a natureza observacional do estudo impede o estabelecimento de relações causais. “Essa interpretação extrapola os limites do desenho do estudo”, disse.

Autor defende o estudo
Procurado, o pesquisador Beny Spira, um dos autores do estudo, disse que as conclusões de que as máscaras não reduziram a transmissão da covid-19 e estão associadas ao excesso de mortalidade devem estar acompanhadas de uma ressalva importante: não se pode inferir causalidade com os dados apresentados.
Spira afirma que “é normal em artigos científicos especular sobre possíveis causas e mecanismos na Discussão”.
“Levantamos possibilidades que possam explicar os dados observados”, afirmou. “Em nenhum momento afirmamos que máscaras causam mortalidade, mas que há uma associação estatística importante e que essa merece ser melhor investigada.”
Ele acrescenta que diversos estudos randomizados e controlados, como a revisão da Cochrane de 2023, mostraram que máscaras, de qualquer tipo, não têm efeito significativo sobre a transmissão viral.
No entanto, o estudo mencionado afirma serem necessárias pesquisas randomizadas e controladas que testem a eficácia das máscaras em múltiplos esquemas e populações, bem como o impacto da aderência na efetividade do equipamento. Ou seja, é preciso analisar o quanto o bom uso ou uso correto da máscara impacta na efetividade.