Alguns boatos e lendas urbanas, por mais desmentidos que sejam, acabam retornando de tempos em tempos. Recentemente, voltaram a circular nas redes sociais relatos de suposto uso de gás por motoristas de aplicativos para dopar passageiras.
Nunca houve comprovação do chamado “golpe do gás”, apesar de alguns casos terem sido até investigados pela polícia. No Poder Judiciário, a única condenação registrada foi a de duas mulheres que tiveram de indenizar um motorista de Uber após falsamente acusá-lo de tentar intoxicá-las.
Mas o que é, afinal, o golpe do gás? A partir de 2022, surgiram vários relatos nas redes sociais de que mulheres estariam sendo vítimas de uma suposta armadilha em carros de aplicativo. Em depoimentos compartilhados na internet, mulheres contaram que sentiam fortes odores nos carros, passavam mal e ficavam confusas. Em comum, todas apontavam o suposto uso de um gás tóxico para deixá-las inconscientes.

Um dos relatos de maior repercussão foi o da atriz Júlia Gomes, em 2023, que disse que um motorista tentou desacordá-la com um gás. Na ocasião, ela contou que sentiu um cheiro forte, passou mal e desceu do carro em uma parada de semáforo.
O golpe do gás é inverossímil e desafia a lógica - afinal, não seria possível espalhar um produto químico pelo ar, dentro de carros, que atingisse apenas passageiras e não motoristas. Mas o rumor se espalha com facilidade graças a uma sensação de insegurança e vulnerabilidade que tem base na realidade. Inúmeros casos de abusos e agressões demonstram que há risco real quando uma mulher fica sozinha com um estranho.
Em 10 de outubro de 2022, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública realizou um painel sobre os boatos de golpe do gás e o aumento da sensação de insegurança nas usuárias de aplicativos de transporte. A delegada Jamila Ferrari, que na época era coordenadora das Delegacias da Mulher de São Paulo e participou da discussão, afirmou que as denúncias cresceram a partir de março de 2022, com uma explosão de relatos entre maio e junho, e depois caíram. A delegada contou que os inquéritos feitos pela polícia não comprovaram intoxicação. Buscas realizadas em veículos detectaram apenas a presença de produtos como álcool 70º, perfumes e odorizadores de ambiente.
Consultada pelo Estadão Verifica, a Polícia Civil de São Paulo afirmou que, até o momento, não encontrou provas ou evidências que confirmassem relatos de supostas intoxicações. O órgão informou que não há dados consolidados sobre denúncias formais relacionados ao golpe do gás no Estado.
Na cidade de Santos (SP), a Justiça determinou que duas mulheres indenizassem um motorista de Uber em R$ 20 mil após afirmarem em redes sociais que teriam sido vítimas de intoxicação durante uma viagem. A polícia constatou que o produto químico alvo das suspeitas era álcool 70º com essência de canela, e não continha sustâncias capazes de provocar inconsciência. A juíza entendeu que o motorista sofreu danos em sua reputação, já que as postagens tiveram grande circulação nas redes sociais.
Uber e parceria para acolher vítimas
A Uber e a MeToo, organização que defende vítimas de violência sexual, têm uma parceria para acolher pessoas que enfrentaram alguma situação crítica durante o transporte pelo aplicativo. A advogada Isabela Del Monde, representante da parceria, ressaltou que a insegurança que as mulheres enfrentam na vida urbana é causada, sobretudo, pela desigualdade de gênero, o que influencia na sensação de medo e alerta constante.

“O que observamos é que, nesta situação do suposto golpe do gás, estava ocorrendo uma conversa muito ruidosa e amedrontada, principalmente nas redes sociais”, disse a advogada. “As informações falsas são usualmente compartilhadas por pessoas em que você confia, com a intenção de proteger.” Segundo ela, a organização deixa de receber relatos sobre o golpe do gás quando o assunto está ausente nas redes sociais.
Isabela afirmou que a parceria entre a Uber e a MeToo tem a intenção de garantir acesso a apoio psicológico e também à Justiça em investigações sobre possíveis abusos. “São acusações sérias e graves, por isso devemos ter um processo justo e célere. É possível que a gente garanta os direitos para as mulheres que fizeram as denúncias e também para os motoristas que estão em seu momento de trabalho”. Segundo a advogada, a Uber colabora com as autoridades judiciais para a investigação dos casos, enquanto a MeToo oferece atendimento a pessoas que passam por situações potencialmente traumáticas.
“Nós temos um canal de apoio psicológico que pode ser acessado após um reporte no aplicativo da Uber”, disse Isabela. “Caso você esteja dentro do enquadramento de potencial trauma, recebe um código que leva para um atendimento gratuito com psicólogos por até quatro horas. O pedido pode ser feito em até seis meses após o caso e usado no prazo de um ano.”
Denúncias devem ser levadas à polícia
A delegada Monique Lima, titular da 6ª Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher, em São Paulo, informou que, embora ainda circulem vídeos sobre o golpe do gás, a maioria das denúncias aconteceu em 2022. “A maciça exposição dos fatos passados contribuiu para que as mulheres tomassem conhecimento das medidas necessárias para evitar situações que as colocassem em vulnerabilidade durante o uso do aplicativo”, observou.
A Delegacia da Mulher orienta que a passageira deve interromper imediatamente uma corrida e procurar as autoridades caso perceba alguma situação suspeita. Aconselha ainda compartilhar a viagem com um contato de segurança e, em caso de urgência, telefonar para o número 190 de dentro do veículo ou solicitar que outra pessoa de confiança o faça. Também é possível formalizar queixas por meio do Web Denúncia da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo.
Em seu site, a Uber fornece informações de segurança para os passageiros (consulte aqui). Em caso de emergência ou situação de risco, é possível ligar diretamente para o 190 com o recurso U-Help no próprio aplicativo. Ele pode ser acessado por meio da Central de Segurança, identificado pelo símbolo de um escudo sobre o mapa de viagem. Em alguns Estados, o recurso é integrado ao serviço da polícia para que a localização e os dados da viagem sejam enviados em tempo real as autoridades. Além disso, também há funcionalidades de gravação de áudio de corridas e checagens de rotas, para o aviso em caso de mudanças no trajeto.
A advogada Isabela Del Monte explica que, em caso de uma situação inadequada dentro de um carro por aplicativo, a pessoa também pode descrever o problema na plataforma da Uber, para que isso seja apurado pela empresa. “Você deve acessar o reporte e escolher uma das categorias, seja de assédio sexual, racismo, etc”, disse. “Também há todo o direito de buscar uma autoridade policial para registrar um boletim de ocorrência, sabendo que os dados estarão protegidos, para que uma investigação possa ser realizada.”
A advogada também ressalta que é importante ter cuidado com a divulgação de dados e situações nas redes sociais. “No calor do momento, pessoas podem divulgar informações falsas e difamatórias. Em qualquer tipo de exposição que se faça online, há o risco de uma responsabilização judicial. Se você quiser, faça os registros das evidências e leve até os foros adequados, como um boletim de ocorrência ou um relato para a companhia. O compartilhamento pode erroneamente causar danos na vida de outras pessoas, e, claro, o indivíduo tem o direito de buscar reparação.”
Este texto foi produzido a partir de uma parceria entre Uber e Estadão Verifica para combater fake news no setor de mobilidade urbana e reforçar o papel do jornalismo profissional. A iniciativa visa desmentir informações falsas e conscientizar o público sobre os impactos negativos da desinformação.