Grupos usam vídeo gravado na Bahia para reavivar a mentira de que escolas distribuem 'kit gay'

Aluna de 11 anos teve acesso em biblioteca ao livro Aparelho Sexual e Cia, voltado para estudantes de 11 a 15 anos; obra foi doada por servidora

PUBLICIDADE

Foto do author Clarissa Pacheco

Quatro anos depois de o então candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro levar um livro à bancada do Jornal Nacional e inventar a existência de um "kit gay" distribuído para crianças em escolas do Brasil, o mito da disseminação de uma "ideologia de gênero" em ambiente escolar voltou à tona. Desta vez, uma menina de 11 anos, aluna de uma escola municipal de Camaçari, na Bahia, teve acesso à mesma obra mostrada pelo então candidato - Aparelho Sexual e Cia: um guia inusitado para crianças descoladas, de Hélène Bruller - na biblioteca do estabelecimento de ensino. Indignado, o pai da menina foi ao local se queixar de que o livro ensina crianças a fazer sexo. Nas redes, outra mentira se espalhou: a de que Bolsonaro tinha razão e que o kit gay existe, sim. As duas alegações são falsas.

 Foto: Estadão

PUBLICIDADE

Primeiro, não existe um kit gay, como afirmou o candidato na época. Este é um nome pejorativo atribuído a um projeto chamado Escola Sem Homofobia, com conteúdo que tratava de questões de gênero e sexualidade e buscava combater a homofobia nas escolas. O projeto foi criado em 2004 pelo governo federal mas, duramente criticado por setores conservadores, teve a circulação suspensa pelo próprio governo em 2011, como o Projeto Comprova já mostrou em 2018.

Também é falso que o livro Aparelho Sexual e Cia seja parte do tal "kit gay" e que tenha sido comprado pelo Ministério da Educação (MEC) para ser distribuído em escolas. Outra versão do conteúdo viral diz que a editora envia o livro para escolas como cortesia, numa tentativa de disseminar o conteúdo informalmente. A Companhia das Letras, responsável pela publicação do livro no Brasil, negou a alegação. Segundo a editora, a obra nem sequer foi inscrita no Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), ligado ao MEC, nem se encaixa no perfil exigido pelo programa.

A editora afirmou ainda que não distribui livros gratuitamente para escolas. "Há um processo em que as equipes pedagógicas podem solicitar um exemplar para análise", disse a Companhia das Letras. "Mas é importante frisar que obra em questão nunca foi proibida ou impedida de circular em escolas ou bibliotecas. É um trabalho informativo e não há nenhuma irregularidade nisso." No caso do livro acessado pela estudante de 11 anos em Camaçari, ele havia sido doado à biblioteca da escola por uma servidora que o comprou em 2019 para ler junto com os dois filhos.

Publicidade

Em nota, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), ligado ao MEC, afirmou que o livro nunca foi adquirido. "Hoje, temos obras inscritas no PNLD para atendimento a estudantes da educação infantil (PNLD 2022), dos anos iniciais do ensino fundamental (PNLD 2023) e do ensino médio (PNLD 2021). Cada uma delas passa por uma série de etapas de análise e avaliação e a obra referida nem sequer está inscrita."  A população pode acompanhar a lista de obras inscritas e o processo de aprovação em cada etapa do PNLD.

Como o livro foi parar na escola?

O Estadão Verifica conversou com a servidora Layunne Magalhães, responsável pela biblioteca da Escola Municipal Amélia Rodrigues, no distrito de Monte Gordo, em Camaçari. Layunne disse que comprou o livro em 2019 e que, como seus filhos já leram o livro, decidiu doar a publicação à biblioteca da escola onde trabalha. Ela negou que tenha entregado o livro à estudante sem que a menina soubesse do que se tratava -- como afirmam políticos e líderes evangélicos locais.

"O livro foi doado por mim à biblioteca da escola, de fato, assim como tanto outros livros que estão lá sem ter um documento que oficialize a doação. Dizem que entrego o livro à aluna, que não sabe do que se trata. Na verdade, a menina escolhe o livro dentro da biblioteca, começa a ler no local e leva pra casa sabendo exatamente que se tratava de educação sexual. Passam-se mais de 15 dias, ela não devolve o livro e, de repente, o pai chega na escola com o livro causando toda a situação", disse Layunne, se referindo ao vídeo viral em que o pai reclama do fato de a menina ter acesso ao livro na escola.

Publicidade

Layunne é servidora concursada da Prefeitura de Camaçari há 12 anos e, segundo ela, foi afastada da biblioteca da escola pela direção da instituição. Ela disse que registrou um boletim de ocorrência por conta de ofensas feitas pelo pai da estudante e que precisou fechar as redes sociais por sofrer ameaças, como mostrou essa matéria do BNews. A servidora ressaltou que não cometeu nenhum crime ou ato ilícito ao levar o livro para a escola, pelo contrário.

"Fui colocada numa situação de risco justamente pelo livro tratar de educação sexual e esse tema ajudar na prevenção e identificação de abusos. Voltei para trabalhar e fui retirada do setor pela direção da escola, sendo que não cometi nenhum ato ilícito ou crime. No momento, estou aguardando reunião com a Secretaria de Educação para saber como vou proceder quanto ao trabalho, já que as ameaças dizem que eu mereço ser punida e nunca mais trabalhar em escola", relatou a servidora.

Segundo ela, não houve qualquer intuito político ao levar o livro para a biblioteca. "Como eu não posso fazer o meu papel de educadora doando um livro sobre educação sexual, enquanto esses conservadores tiram o direito da criança à informação?", questionou.

Sindicância

Publicidade

PUBLICIDADE

De acordo com a Secretaria de Educação de Camaçari (Seduc), o livro Aparelho Sexual e Cia "não compõe o acervo das bibliotecas escolares da rede municipal, não faz parte do Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) e tampouco é indicado para trabalho pedagógico com os estudantes". Em nota, o órgão disse que abriu uma sindicância para apurar o caso e ouvir os envolvidos. A titular da secretaria Neurilene Martins, esteve na Escola Municipal Amélia Rodrigues, no distrito de Monte Gordo, onde ouviu os pais da menina. A Secretaria de Educação disse que a servidora também foi ouvida. "Quero destacar que compartilhamos do mesmo intuito, que é resolver esse conflito dentro dos princípios da cultura da paz", afirmou a secretária.

Na nota, Seduc confirmou que o vereador Manoel Filho (PDT) esteve na escola como representante do Poder Legislativo e da comunidade. Nas redes sociais, o vereador, que é presbítero da Igreja Assembleia de Deus de Barra do Jacuípe, postou um vídeo no qual afirmou que "a servidora será punida", mesmo sem a conclusão da sindicância. Ele chamou o livro de "material macabro".

O Estadão Verifica entrou em contato com a Câmara Municipal de Camaçari para saber se o vereador foi à escola representando o órgão e se ele teve acesso à sindicância antes da conclusão, mas não obteve resposta até a publicação desta checagem.

Aparelho Sexual e Cia

Publicidade

O livro ao qual a estudante de 11 anos teve acesso em Camaçari é a tradução para o português da obra francesa Aparelho Sexual e Cia, da escritora Hélène Bruller. O livro usa informações científicas e o humor do personagem de quadrinhos Titeuf para falar sobre amor e sexo para um público jovem. Foi lançado em 2007 no Brasil pela Companhia das Letras. Em 2018, quando foi atacado por Bolsonaro, o livro estava esgotado, mas foi reimpresso na época.

"A editora Companhia das Letras reitera que confia no conteúdo do livro Aparelho Sexual e Cia, uma obra que enfoca todos os aspectos da sexualidade, com sólida base pedagógica e rigor científico", disse a editora, em nota. "Justamente por sua seriedade e pela importância do tema -- cuja dificuldade de tratamento foi superada pela leveza na abordagem de assuntos como a paixão, as mudanças da puberdade, a contracepção, doenças sexualmente transmissíveis, pedofilia e incesto --, a obra foi publicada em 10 línguas, vendeu mais de 1,5 milhão de exemplares no mundo, e foi transformada em exposição."

O livro não ensina crianças a fazer sexo, nem dissemina "ideologia de gênero", outro termo amplamente usado por grupos conservadores contrários às discussões sobre feminismo, sexualidade e diversidade.

A Companhia das Letras afirma que o material do livro nunca recebeu qualquer "acusação ou reprimenda" na Europa. "Ao contrário, virou um modelo de como informar os jovens sobre temas importantes e incontornáveis, a partir de um tratamento comprometido e cuidadoso", disse a editora, em nota que também enviou à imprensa em 2018, quando Bolsonaro atacou o livro.

Publicidade

 

Comentários

Os comentários são exclusivos para cadastrados.