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A democracia poderia retroceder na Colômbia?

Setor de energia é a mais preocupante fraqueza institucional da Colômbia e pode representar riscos para o país

Por Javier Corrales*

Nenhum país latino-americano é verdadeiramente livre do risco de retrocesso da democracia. Desde 2000, a região testemunhou numerosos casos de democracias adquirindo gradualmente tons semiautoritários. A Colômbia, de fato, já passou por um episódio de retrocesso, sob o presidente Álvaro Uribe. Um novo surto de retrocesso, desta vez a partir da esquerda, não é algo inconcebível em nenhum país, incluindo a Colômbia.

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Mas apesar de os riscos serem reais na Colômbia, eles não parecem iminentes – com uma ressalva. O setor de energia, apesar de seu histórico de força, pode muito bem representar a mais preocupante fraqueza institucional na democracia colombiana.

O retrocesso da democracia ocorre por meio da erosão institucional: presidentes minam deliberadamente a autonomia das instituições para torná-las mais partidárias e, nesse processo, menos profissionais. Quando essa erosão ocorre, o estado de direito é substituído pelos desejos do presidente.

Presidente colombiano Gustavo Petro discursa após encontro com o presidente chileno Gabriel Boric em Bogotá, nesta segunda-feira, 8. Petro é o primeiro presidente de esquerda na história da Colômbia Foto: Luisa Gonzalez/Reuters

Ainda que a força inicial de qualquer instituição não seja indicadora de sua capacidade de resistir a assaltos presidenciais, somos capazes, mesmo assim, de avaliar quais instituições em qualquer país parecem mais vulneráveis. Na Colômbia, o Congresso e as cortes mostram alguma vulnerabilidade, mas nada em comparação a algumas instituições econômicas.

Sinais tranquilizadores no Congresso

Ao determinar se uma legislatura tem ou não capacidade de resistir ao domínio de um presidente, três fatores são mais importantes: o grau em que o partido governista controla a legislatura, o poder de barganha dos partidos que não formam o governo e a propensão do partido governista em se tornar um culto.

Em relação ao controle do partido governista sobre o Congresso, o presidente Gustavo Petro está em desvantagem. Ele não emergiu das eleições como líder do que alguém pode qualificar como um partido hegemônico. Ele mal conquistou a maioria dos votos – 50,47% no segundo turno. Ele não obteve uma maioria clara em nenhuma das Câmaras do Congresso e teve de negociar coalizões para garantir apoio à sua agenda. O mesmo aconteceu na Colômbia com os dois presidentes que o antecederam, Juan Manuel Santos e Iván Duque – e ambos tiveram de nomear para o gabinete membros de outros partidos e desistir de algumas políticas para preservar uma relação funcional com partidos de fora do governo. Quando um partido governista precisa de coalizões no Congresso, alianças partidárias ganham poder de barganha. E podem usar esse poder para evitar retrocessos da democracia.

Talvez a maior diferença entre Petro e seus dois antecessores tenha a ver com a força relativa dos partidos que não integram o governo. Aqui, a conjuntura favorece Petro. Muitos cientistas políticos suspeitam que todos os partidos que não formam o governo na Colômbia saíram profundamente feridos da eleição presidencial de 2022. Nenhum obteve mais assentos que o partido de Petro. Essa fraqueza (em assentos e no moral) que permeia vários partidos significa que o poder de barganha das coalizões partidárias pode ser mais fraco do que no passado. Isso aumenta o risco de engrandecimento do Executivo.

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Mas de longe o risco mais importante no Congresso da Colômbia é o partido governista se tornar um culto político à personalidade. Houve sinais durante a campanha de que isso é provável. Uma grande facção dentro do Pacto Histórico, o partido de Petro, se sente muito confortável com os rasgos autoritários do presidente. A maioria dos apoiadores de Petro negam até hoje que o presidente tenha um histórico de impulsos autocráticos. O caso mais famoso foi seu fiasco na coleta de lixo quando era prefeito de Bogotá. Petro tentou nacionalizar o serviço valendo-se de métodos autocráticos. Muitos dos apoiadores de Petro ainda não veem a coisa desta maneira, afirmando que, em vez disso, Petro atuou de maneira profundamente democrática por estar, na realidade, retirando privilégios de elites econômicas. Para muitos dos seguidores de Petro, seu unilateralismo não é uma falha, é uma força. Eles podem se radicalizar se Petro passar a se confrontar com políticos da oposição. À medida que partidos governistas se radicalizam, aumentam as chances de retrocesso da democracia.

O Judiciário

A maioria dos presidentes que erodem a democracia o faz colocando em dúvida a imparcialidade das cortes. Eles transformam os sistemas Judiciários em veículos do legalismo autocrático: protegendo a presidência de problemas jurídicos ao mesmo tempo que criam problemas jurídicos para a oposição. Uma tática comum é colocar o foco na nomeação, demissão e promoção de magistrados.

Se Petro aderir às regras de nomeação existentes e também respeitar o ordenamento constitucional contra a reeleição presidencial, será difícil para ele erodir a autonomia do Judiciário colombiano.

A resiliência das mais altas cortes da Colômbia decorre do fato de que elas não são um corpo unificado, mas, em vez disso, estão separadas em três unidades distintas (a Corte Constitucional, a Suprema Corte e o Conselho de Estado). Uma quarta unidade (o Conselho Superior da Magistratura) é encarregada de supervisionar o Judiciário. Cada uma dessas estruturas possui diferentes tribunais (salas) e procedimentos jurídicos. Para muitas salas, o presidente não tem poderes plenos de nomeação de magistrados.

Motocicleta passa diante da sede da campanha de Gustavo Petro em Bucaramanga, na Colômbia. Partido do esquerdista saiu vitorioso também no Legislativo Foto: Luis Eduardo Noriega/EFE

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Pode ser possível para um presidente transformar algum desses organismos em um corpo mais partidário segundo as regras normais da nomeação. Contudo, em um único mandato não há tempo suficiente para que um presidente aparelhe o Judiciário completamente. Não abrirão muitas vagas nos próximos quatro anos. Então, contanto que Petro respeite as regras existentes e o limite de tempo de seu mandato, o Judiciário parece a salvo.

A indústria petrolífera: um caminho perigoso?

Mais do que o Congresso ou as cortes, o risco maior implica outras duas instituições, ambas relacionadas mais à economia do que aos tradicionais pesos e contrapesos da política: a Ecopetrol, estatal petrolífera, e a Agência Nacional de Hidrocarbonetos (ANH), agência independente que regula a Ecopetrol e o setor de energia.

Desde o tempo de Uribe, a Ecopetrol e a ANH têm conseguido permanecer profissionais e independentes do Executivo. Esta é uma razão pela qual a Colômbia tem sido tão bem-sucedida em desenvolver o setor de hidrocarbonetos e se tornar um país exportador de petróleo. Presidentes simplesmente não interferiram muito nessas instituições para manipular as rendas do petróleo e beneficiar-se politicamente.

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Mas líderes anteriores respeitaram essa autonomia por sua adesão às normas e concordância ideológica com a missão dessas instituições, não porque encontraram suas mãos estritamente atadas. As inclinações ideológicas e políticas de Petro, por outro lado, o tornam menos disposto a proteger a autonomia do setor petrolífero. Ele apoia vigorosamente o fim da dominância do setor sobre a economia da Colômbia. Esse compromisso com a descarbonização, apesar de merecedor de elogios de um ponto de vista desenvolvimentista, poderia prover justificativa ideológica para uma grande reforma institucional na Ecopetrol e na ANH.

Tanto legalmente quanto politicamente, Petro poderia manipular com muito mais discrição o setor petrolífero, em vez de se meter com o Congresso ou as Cortes. Manipular o quadro de funcionários e as regras de nomeação nessas instituições dificilmente provocará reações robustas do establishment político. Alguns técnicos sem dúvida soarão o alarme, mas Petro poderá desacreditá-los qualificando-os como neoliberais. No fim, o sistema político e a oposição poderão simplesmente não se incomodar, porque na Colômbia poucas pessoas reconhecem o quão valiosa a independência dessas instituições tem sido para o desempenho macroeconômico do país.

Se Petro for bem-sucedido em erodir a autonomia da Ecopetrol e da ANH, o Executivo colombiano concentrará muito mais poder econômico do que Uribe jamais conseguiu. É aí que percebo o maior risco para a democracia da Colômbia.

Alguém poderia argumentar que um elemento atenuante de risco no cenário descrito acima é o diminuto tamanho do setor petrolífero colombiano. E Petro na realidade quer reduzi-lo ainda mais. Capturar as instituições de energia do país nesse contexto não conferirá ao presidente poderes similares ao de Hugo Chávez na Venezuela, Rafael Correa no Equador e Evo Morales na Bolívia, onde os setores de petróleo e gás natural eram massivos.

Talvez. Mas Petro precisa de dinheiro. Ele poderá decidir que a descarbonização pode esperar. O desfecho poderia ser um cenário em que o presidente usa a ideologia da descarbonização para obter mais poderes partidários dentro do setor de energia ao mesmo tempo em que, no médio prazo, não faz nada para minimizar a dependência em relação aos combustíveis fósseis com o intuito de maximizar o acesso à petrodólares.

Esse cenário daria a Petro muito mais poder institucional do que seus antecessores jamais desfrutaram. Numa América Latina escassa em capital e repleta de regulações, um pouco de dinheiro a mais nas mãos de um presidente poderá fazer muito para silenciar oponentes. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

*Corrales ocupa a cátedra Dwight W. Morrow 1895 lecionando ciência política na Faculdade Amherst e é membro do conselho editorial da AQ.

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