A direita transforma os EUA em uma arma apontada para si mesmos; leia análise

O que a extrema direita qualifica como ‘substituição’ seria mais bem descrito como renovação

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Por Bret Stephens*
5 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - No sentido mais amplo, o que é classificado de “teoria da substituição” — a ideia de que elites americanas conspiram para substituir os ditos americanos verdadeiros por imigrantes vindos de países pobres — é meramente uma descrição do modo de vida americano, consagrado pela tradição, codificado pela lei e promovido por sucessivas gerações de líderes americanos, de Washington a Lincoln, de Kennedy a Reagan.

Houve quatro, ou pode-se dizer cinco, grandes substituições na história americana.

A primeira foi a pior e mais cruel: a destruição — por meio de guerras, matanças, trapaças e expulsões em massa — dos americanos nativos pelos imigrantes europeus. Os mesmos adeptos da extrema direita que atualmente esperneiam em razão de sua própria suposta substituição por estrangeiros tendem a se mostrar absolutamente indignados quando recordados de que alguns de seus próprios ancestrais foram, eles mesmos, os que substituíram.

A segunda foi uma substituição religiosa, dos protestantes, que agora somam menos da metade dos americanos. Isso começou pelo menos a partir de 1655, quando a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais rejeitou uma petição de Peter Stuyvesant pela expulsão dos judeus de Nova Amsterdã (fazê-lo, escreveu a companhia, seria “um tanto irracional e injusto”). Esse processo se acelerou nos séculos 19 e 20, principalmente graças à imigração em massa de católicos da Europa e posteriormente da América Latina. E continua com a chegada de muçulmanos, budistas, hindus e outros, juntamente com uma perda de fé mais generalizada.

Teoria da substituição teria incentivado o atirador Payton Gendron a matar 10 pessoas em Buffalo, EUA Foto: Mark Mulville/The Buffalo News via AP

A terceira foi a substituição étnica dos ingleses. Em sua chegada à América do Norte, vieram com eles servos temporários da Irlanda e da Europa continental, seguidos por imigrantes da Alemanha, da França e da Irlanda e posteriormente de pontos ainda mais distantes do oriente. My Ántonia, de Willa Cather, obra clássica sobre a pradaria americana, é uma história que trata de imigrantes da Boêmia e de outros lugares da Europa Central que logo se tornaram a espinha dorsal do Meio-Oeste americano.

Os não europeus passaram mais dificuldade. Os descendentes dos africanos escravizados, os únicos substitutos que vieram contra sua vontade, enfrentaram anos de rejeição mesmo após sua emancipação. E a primeira legislação federal que restringiu a imigração foi a Lei de Exclusão Chinesa, de 1882.

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A quarta substituição foi das elites WASP (anglo-saxões, brancos e protestantes). “Um furtivo Yacoob, ou Ysaac, ainda fedendo a gueto, grunhindo em ídiche de maneira bizarra aos oficiais de alfândega” — foi como Henry Adams, o neto de John Quincy, descreveu maldosamente imigrantes que viu em Nova York.

No espaço de uma geração, esses Yacoobs e Ysaacs viraram Goldmans, Frankfurters, Salks, Rickovers e Bellows. A julgar pelos sobrenomes nas listas de matriculados na Brooklyn Tech ou outras universidades de elite, a próxima geração de elites também será de imigrantes ou seus filhos, muitos vindos do sul ou do leste da Ásia.

‘Eleitores fáceis’

A quinta substituição é a mais contenciosa, mas também a mais rotineira e comum: a suposta substituição da classe de trabalhadores brancos e nascidos nos EUA por uma classe de trabalhadores não brancos e estrangeiros. Segundo essa narrativa, as políticas de Washington — da Lei de Imigração e Nacionalidade, de 1965, passando pelo Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, de 1994, até as atuais falhas de policiamento na fronteira — são parte de uma ampla conspiração para abastecer as empresas americanas com mão de obra barata e os políticos democratas com eleitores fáceis.

Isso não é novidade — e é algo irrelevante. Os EUA “substituíram” repetidamente, desde os tempos de sua fundação, suas classes trabalhadoras por imigrantes, mas não enquanto um ato de substituição, tampouco na forma de alguma conspiração sinistra, mas enquanto resultado de ascensão social, demandas de uma economia em crescimento e benefícios de uma população em crescimento. A ideia de que o NAFTA simplesmente fez empregos desaparecerem dos EUA contradiz o fato de que o índice de participação no mercado de trabalho atingiu seu maior nível nos anos que se seguiram à assinatura do acordo.

Isso tudo indica que os EUA, de maneira mais ampla, são em si o próprio fenômeno da substituição, e isso ocorre desde a fundação do país — às vezes pela força, mas principalmente por escolha. O que a extrema direita qualifica como “substituição” seria mais bem descrito como renovação.

Pessoas rezam nas proximidades de supermercado que foi cenário de ataque a tiros em Buffalo Foto: Brendan McDermid / REUTERS

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A primeira lei de imigração dos EUA foi aprovada pela primeira legislatura do Congresso e sancionada pelo primeiro presidente do país. O território americano quase certamente era mais diverso linguisticamente na década de 1890 do que é hoje — e, com frequência, imigrantes adultos jamais aprendiam a falar inglês além do básico. Pessoas que hoje se consideram americanos normais, pessoas com sobrenomes como Stefanik, Gaetz ou Anton, seriam vistas por gerações anteriores de nativistas, em razão de sua fé ou etnia, como incultas e inadmissíveis, sujas e desleais.

Isso tudo emana de um certo entendimento tradicional que temos de nós mesmos enquanto país, segundo o qual uma noção de destino em comum amalgamada por ideais importa mais do que origens comuns amalgamadas por sangue. Isso também é necessário para qualquer forma de conservadorismo que pretenda estabelecer um limite para o nacionalismo sanguíneo e territorial e as políticas identitárias para brancos. Não é possível defender o ideal de “E pluribus unum” apagando o pluribus. Subscrever à “teoria da substituição” — deste tipo sinistro e conspirativo que neste momento toma partes da direita — é transformar os EUA em uma arma apontada para si mesmos.

Escrevo estas palavras imediatamente após o massacre em Buffalo, no sábado passado, cujo suposto perpetrador escreveu uma nota racista e antissemita a respeito da teoria da substituição. Normalmente é um erro julgar uma ideia com base no comportamento de um fanático tresloucado. É também desnecessário. O perigo da teoria da substituição em sua forma atual não é que alguns de seus seguidores sejam doidos, mas que muitos deles sejam sensatos. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL