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A vida em uma unidade militar da Ucrânia: em busca de abrigo e à espera das armas do Ocidente

Exército ucraniano contra-ataca com a artilharia que possui, mas tem poucas armas capazes de atingir a linha de fogo russa

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Por Andrew E. Kramer

THE NEW YORK TIMES - Pelos binóculos, os soldados ucranianos conseguem ver as posições dos russos ao longe. Mas o único sistema de artilharia que eles operam neste pequeno e heterogêneo posto avançado instalado numa estepe do sul ucraniano não tem alcance suficiente para atingi-los.

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Circunstâncias como esta impuseram uma rotina entorpecida e sombria sobre os defensores da Ucrânia, que são castigados diariamente pelo fogo da artilharia russa sem ter como responder à altura. A cada poucas horas, eles mergulham nas trincheiras para escapar dos projéteis que chovem sobre suas cabeças.

“Eles determinaram nossa posição, sabem onde estamos”, afirmou o sargento Anatoli Vikhovanets. “É como se estivéssemos nas palmas de suas mãos.”

Um soldado ucraniano em uma posição de artilharia de curto alcance na região de Kherson monitora os movimentos russos à distância, em 6 de maio. Foto: David Guttenfelder/NYT Foto: David Guttenfelder/NYT

Enquanto o presidente Volodmir Zelenski faz apelos quase diários ao Ocidente pedindo sistemas de artilharia mais pesada, são posições como esta, à margem direita do Rio Dnipro, que ilustram mais claramente o quão crucial esse tipo de armamento é para a Ucrânia. Analistas afirmam que a batalha que transcorre atualmente não depende tanto da habilidade ou da bravura dos soldados ucranianos, mas da precisão, da quantidade e do poder de destruição de armas de longo alcance.

O equilíbrio da capacidade de artilharia dos Exércitos nas proximidades de Privillia pende tanto para o lado russo que as autoridades ucranianas sublinharam especificamente a situação na região para as autoridades ocidentais e o Congresso americano em seus apelos por mais apoio militar.

Em resposta, os aliados do Ocidente têm tentado apressar o envio de sistemas de artilharia e equipamentos associados para a Ucrânia, e o armamento está começando a chegar. Mas não tão rapidamente quanto pretenderam as autoridades ucranianas, especialmente em lugares como este pequeno posto avançado no sul.

Os Estados Unidos anunciaram planos de enviar 90 obuses M777 de fabricação americana, um sistema de artilharia que é capaz de disparar projéteis a 40 quilômetros de distância com extrema precisão, mas somente esta semana o primeiro canhão desse modelo foi disparado em combate nesta região, segundo mostra um vídeo fornecido pelos militares da Ucrânia a um meio de imprensa do país.

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Militares americanos carregam avião cargueiro com obuses M777 para serem entregues à Ucrânia. Foto: U.S. Marine Corps/Cpl. Austin Fraley/Reuters Foto: U.S. Marine Corps/Cpl. Austin Fraley/Reuters

Outras armas americanas com as quais os ucranianos estão contando incluem drones destinados a localizar alvos e correção de mira e veículos blindados tracionados capazes de rebocar os obuses para suas posições mesmo sob fogo inimigo.

Na segunda-feira, o presidente Joe Biden sancionou o programa Lend-Lease, que permitirá envios adicionais de armamentos americanos para a Ucrânia, e na noite da terça-feira, a Câmara dos Deputados aprovou um pacote de ajuda de US$ 40 bilhões para o país.

Mas por enquanto, no posto avançado da 17.ª Brigada de Tanques, coberto por um bosque entre dois campos, a única coisa que a maioria dos soldados pode fazer é tentar sobreviver.

Para tanto, eles nomeiam encarregados para escutar a artilharia russa 24 horas. O soldado da vez fica atento, como um cão de guarda, de pé, no centro da unidade, escutando a artilharia russa disparar ao longe. Quando o alerta é “Ar!”, os soldados têm 3 segundos para mergulhar em alguma trincheira antes dos projéteis chegarem.

Soldado ucraniano em sua trincheira em local de combate a curta distância com os russos, na região de Kherson. Foto: David Guttenfelder/NYT  Foto: David Guttenfelder/NYT

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O Exército ucraniano contra-ataca com a artilharia que possui na retaguarda desta posição, mas tem poucas armas capazes de atingir a linha de fogo russa.

Ao longo da guerra, o Exército da Ucrânia obteve um sucesso excepcional ao superar e derrotar as forças russas no norte do país, valendo-se de furtividade e mobilidade para executar emboscadas contra um Exército maior e mais bem equipado. Mas no sul da Ucrânia, os ucranianos combatem num tipo diferente de guerra.

Na estepe, as serpenteantes e fluidas linhas de frente dos dois Exércitos estão separadas por até dezenas de quilômetros, espalhadas ao longo de gigantescos campos amarelados por cultivos de colza, esverdeados pelo trigo de inverno ou enegrecidos pela terra arada; e crivados por minúsculos vilarejos.

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Ocasionalmente, pequenas unidades de ambos os lados penetram essa zona-tampão para incursões de combate direto ou para definir ataques de artilharia, usando os bosques esparsos como camuflagem. “Não há onde se esconder”, afirmou em entrevista o comandante de uma brigada de reconhecimento que está acionando unidades para esses combates. Ele pediu para ser identificado apenas por seu apelido, Botsman.

“É como olhar para um tabuleiro de xadrez”, afirmou ele. “Cada lado vê a movimentação do outro. A coisa depende apenas de qual força de ataque você possui. Tudo ocorre às claras. A dúvida é: temos capacidade de atingir aquele ponto?”

Soldados de ambos os lados têm um apelido para os armamentos com esse alcance: “deuses da guerra”.

A Ucrânia entrou nesta guerra em desvantagem. Os canhões Peony da Rússia, que disparam projéteis de 203 milímetros, por exemplo, têm alcance de aproximadamente 38 quilômetros, enquanto o fogo dos Geocent de 152 milímetros usados pela Ucrânia alcança 29 quilômetros (os sistemas de artilharia herdados dos soviéticos, usados pelos dois lados, têm nomes de flores; canhões Cravo e Tulipa também participam da guerra).

É por isso que os ucranianos estão tão desesperados para obter os obuses americanos: seu alcance de 40 quilômetros, com disparos precisos guiados por GPS poderiam, em certos fronts, fazer a vantagem oscilar levemente de volta para a Ucrânia.

“Os russos têm duas vantagens agora: artilharia e aviação”, afirmou Mikhailo Zhirokhov, autor de Gods of Hybrid War (Deuses da guerra híbrida, na tradução livre), livro sobre os combates de artilharia na guerra contra os separatistas apoiados pela Rússia no leste ucraniano. “A Ucrânia precisa de artilharia e mísseis antiaéreos. Esse armamento tem importância crucial no front.”

Pouca utilidade

O Exército ucraniano tem quantidade insuficiente até de artilharia de médio alcance, como armamentos capazes de contra-atacar a linhas de fogo russa que castiga esta unidade ucraniana a 15 quilômetros de distância. Os russos estão em uma pedreira, que aparece nos binóculos dos ucranianos como um poeirão acinzentado à distância.

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Os campos do entorno estão esburacados com centenas de crateras. Os soldados ucranianos operam um canhão de artilharia antitanque que tem pouca utilidade contra a posição russa, que está fora de seu alcance.

Mas esses soldados ainda servem a um propósito: eles são capazes de impedir um ataque de tanques usando seu armamento antitanque de curto alcance evitando avanços russos — contanto que consigam resistir ao fogo de barragem diário. Até aqui, nenhum integrante da unidade foi ferido ou morto. Essa situação deixa o front estagnado, após dois meses durante os quais as forças ucranianas avançaram cerca de 65 quilômetros nesta região.

A Rússia não consegue capitalizar sobre sua superioridade em artilharia para avançar. Sua tática de ataque em campo aberto é castigar as posições inimigas com artilharia e depois avançar com veículos blindados, uma manobra chamada “reconhecimento para contato”, destinada a devastar o que tiver sobrado da linha defensiva.

Mas por causa da abundância ucraniana em mísseis antiblindados, a Rússia não consegue avançar e tomar território.

A Ucrânia, ao mesmo tempo, também não consegue avançar, apesar de sua tática ser diferente. O Exército ucraniano se organiza em pequenas unidades de infantaria, com veículos blindados desempenhando apenas funções de apoio. Apesar da Ucrânia ter capacidade para avançar, suas forças não conseguem manter posições e territórios e usá-los para dar apoio logístico para avanços maiores, já que qualquer território novo permaneceria sob alcance do fogo russo.

Um avanço planejado das forças ucranianas nesta área depende da chegada de obuses M777 e outros sistemas ocidentais de artilharia de longo alcance capazes de atingir a retaguarda da artilharia russa. Então a infantaria ucraniana poderia avançar sob o guarda-chuva da artilharia desses sistemas de longo alcance.

Se artilharia mais pesada chegar, a balança poderia oscilar rapidamente, afirmou Oleksii Arestovich, conselheiro do chefe do Estado-Maior de Zelenski.

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Nos combates à margem direita do Rio Dnipro, o objetivo da Rússia parece ser amarrar forças ucranianas que, de outra maneira, poderiam se deslocar para a batalha na região do Donbas, no leste da Ucrânia.

O objetivo da Ucrânia, uma vez que o país obtenha a artilharia capaz de fazer frente aos canhões russos, é avançar sobre os campos até alcançar com o fogo duas pontes e uma represa que atravessam o Rio Dnipro, em uma operação que poderia cortar linhas de abastecimento das forças russas, afirmou Arestovich, o conselheiro presidencial.

“Faríamos isso com prazer”, afirmou o coronel Taras Styk, um dos comandantes da 17.ª Brigada de Tanques. “Mas neste momento não temos nenhum armamento capaz de atingi-los.”/ TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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