Opinião | A mensagem clara do novo governo Trump: as pessoas leais a ele valem mais que o resto dos americanos

Se, de acordo com o governo Trump, tanta gente nos EUA é do tipo errado, quem é do tipo certo?

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Por Carlos Lozada (The New York Times)

Em seus primeiros dias, o segundo governo de Donald Trump tem transmitido uma mensagem clara: os Estados Unidos estão repletos do tipo errado de gente.

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Funcionários públicos federais, por exemplo, foram considerados o tipo errado de gente. Suas afiliações políticas e ideológicas são questionáveis, suas ideias, destrutivas, e seus empregos de baixa produtividade não valem seus salários. Muitos infringem a lei ou são simplesmente “maus”. Quer trabalhem na USAID, no Tesouro, na CIA ou na FDA, em Washington ou qualquer outra parte do país, eles deveriam aproveitar a escolha que lhes foi oferecida e se demitir. Em alguns casos, deveriam ser expurgados.

Bebês nascidos nos EUA filhos de pais indocumentados — ou de pais que estão aqui legalmente mas apenas de forma temporária, como pessoas com visto de trabalho ou estudantis — também são pessoas erradas. Não são verdadeiros americanos e não devem receber a “dádiva” da cidadania.

Refugiados e solicitantes de asilo são o tipo errado de gente e devem ser impedidos de entrar no país. Americanos transgêneros não têm “a humildade e a abnegação” necessárias para integrar as Forças Armadas dos EUA, de acordo com uma ordem executiva de Trump, e não podem mais servir.

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Ex-oficiais como Mark Milley, que foi chefe do Estado-Maior Conjunto durante o primeiro governo Trump, são desleais e não merecem proteção do governo, nem sequer um retrato do Pentágono. E qualquer um que se encaixe em alguma categoria de “diversidade”, de qualquer tipo, é automaticamente suspeito, um bode expiatório conveniente sempre que alguma coisa — como incêndios florestais ou quedas de avião — der errado.

Donald Trump conversa com a imprensa em Mar-a-Lago Foto: AP / AP

Um impulso político antigo e familiar

Trata-se de um impulso político familiar, com antecedentes que precedem os mandatos do presidente Trump. Durante a campanha presidencial de 2008, Sarah Palin, a candidata republicana à vice-presidência, refletiu sobre as virtudes dos “EUA de verdade” — aquelas pequenas cidades patrióticas que compõem as “áreas pró-EUA desta grande nação”. (Posteriormente, ela pronunciou um daqueles pedidos de desculpas do tipo “sinto muito se fui mal compreendida”.) Mas agora nós passamos do elogio aos EUA de verdade à analise sintática dos americanos de verdade. E a auditoria é conduzida por um executivo vingativo e decididamente sem nenhum remorso.

Se, de acordo com o governo Trump, tanta gente nos EUA é do tipo errado, quem é do tipo certo? Quem é digno das nossas Forças Armadas, do nosso governo, do nosso território?

O governo invoca a meritocracia como uma maneira de responder essas perguntas. Conforme definiu Trump numa ordem executiva assinada em seu segundo dia no cargo, “mérito individual, aptidão, trabalho duro e determinação” devem ser os fatores primordiais ao contratar trabalhadores não apenas no governo, mas em todos os “setores importantes da sociedade americana”.

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Essa diretriz poderia ser mais persuasiva se Trump a tivesse seguido ao selecionar os membros importantes de seu governo. Matt Gaetz, a primeira escolha de Trump para servir como procurador-geral, tem o mérito individual necessário para liderar o Departamento de Justiça? Tulsi Gabbard tem a aptidão necessária para se tornar diretora de inteligência nacional, ou Robert Kennedy Jr. para supervisionar o Departamento de Saúde e Serviços Humanos? Pete Hegseth é a pessoa mais dedicada para comandar o Departamento de Defesa?

Elon Musk no Salão Oval da Casa Branca Foto: Jim Watson/AFP

Fidelidade canina

A resposta é evidente. O mérito deles não advém de experiência profissional nem de qualificações excepcionais; decorre, em vez disso, de sua fidelidade ao presidente. (Quando novos nomeados são aclamados como perturbadores, lembre-se de que na era Trump “perturbador” é um eufemismo para “obediente”.)

O imperativo racial por trás da determinação das pessoas certas ou erradas — lembre-se, por exemplo, do desdém de Trump por estrangeiros que supostamente envenenam o sangue do país — se funde com argumentos sobre mérito. Darren Beattie, um ex-redator de discursos de Trump que foi nomeado subsecretário interino de diplomacia pública no Departamento de Estado, escreveu no fim do ano passado que “homens brancos competentes devem estar no comando se quisermos que as coisas funcionem”.

Uma coisa seria simplesmente reverter os excessos dos programas DEI em todo o governo federal, mas tal visão de mundo leva esse processo ao seu extremo ilógico: se buscar um tipo de força de trabalho diversa é proibido, seu oposto deve ser a melhor, a única, força de trabalho possível.

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‘O nosso pessoal’

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Durante sua campanha para o Senado dos EUA em 2021, J.D. Vance disse a um apresentador de podcast conservador que, caso recuperasse a presidência, Trump precisaria “demitir todos os burocratas de nível médio” e “substituí-los por nosso pessoal”. O uso de “nosso pessoal” por Vance grudou na minha cabeça, principalmente porque me pergunto quem o futuro vice-presidente tinha em mente. Quem conta como “nosso pessoal” para este governo? Que marcador de pertencimento faz de alguém um deles?

Trump se refere às pessoas frequentemente com pronomes possessivos na primeira pessoa. Às vezes alude para alguma categoria, como em “meus juízes” ou “meus generais”, mas ele também atribui esses enunciados a indivíduos específicos, como em “meus dois Steves” (referindo-se a Steve Bannon e Stephen Miller) e, no caso de um infeliz ex-presidente da Câmara, “meu Kevin”. Trump também anseia ver “meu povo” lhe batendo continência do mesmo modo que os norte-coreanos batem para Kim Jong-un.

Com esta última expressão, “meu povo”, Trump pode se referir aos seus conselheiros e subordinados, ou talvez ao seu partido, ou talvez ao movimento MAGA, ou aos eleitores, ou até mesmo aos americanos em geral. Essa ambiguidade captura os riscos e o poder inerentes a uma noção de como “nós, o povo”. Quando a expressão não inclui todos, quando é maleável e mutável, nunca se sabe quem conta, por quanto tempo e quem faz o cálculo. É Trump que determina quem é o tipo certo de gente para os EUA hoje? O Escritório de Gestão e Orçamento que escolhe? Elon Musk decide quem faz parte do futuro ou quem é jogado no triturador de madeira?

Um pertencimento ilusório

Faz tempo que o pertencimento é ilusório nos EUA — um “nós” disputado por riqueza, raça, sexo e ancestralidade. Em seu segundo discurso de posse, Trump declarou que “o nosso governo enfrenta uma crise de confiança”, mas também que, com sua vitória eleitoral, “a unidade nacional está retornando para os EUA”. Pode-se descartar essa visão de harmonia cívica renovada considerando-a uma fala obrigatória, ou simplesmente mais autoestima trumpiana em vez de um reflexo fiel da realidade.

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Mas isso ignora o projeto subjacente do governo. A unidade nacional está realmente retornando — isto é, se sua concepção de nação limitar-se às pessoas que estão do seu lado, se apenas parte das pessoas for realmente “o povo”. Este presidente prefere liderar uma nação na qual o pertencimento está constantemente em jogo, na qual algumas pessoas são do tipo errado e outras são do tipo certo, na qual alguns são americanos de verdade e outros nunca serão.

O resultado é uma crise de confiança não apenas em nosso governo, mas uns nos outros. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Opinião por Carlos Lozada
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