Lentidão no uso de armas com IA coloca supremacia militar dos Estados Unidos em perigo

Para vencer guerras futuras, são necessárias novas armas, novos fornecedores e um novo sistema de aquisição

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Por The Economist

Nas linhas de frente da Ucrânia, a guerra não é tão nebulosa quanto costumava ser. Satélites e drones equipados com muitos tipos de sensores estão sempre escaneando cada centímetro do campo de batalha, enquanto a inteligência artificial (IA) interpreta instantaneamente os dados coletados. É muito mais fácil do que seria antes para qualquer um dos lados detectar e atacar qualquer coisa que se mova — uma das razões pelas quais grandes ofensivas antiquadas fizeram tão pouco progresso.

Os Estados Unidos desempenharam um papel importante nessas mudanças. O país ajudou as forças ucranianas a construir drones mais capazes, porém mais baratos do que aqueles implantados no Afeganistão e no Iraque, por exemplo, e a desenvolver uma “cadeia de destruição” de IA na qual os alvos são identificados e as munições guiadas até eles, geralmente bem atrás das linhas inimigas. As empresas americanas também estão na vanguarda desta nova era. Elas visitam a Ucrânia regularmente para observar o desempenho de suas armas e adaptá-las adequadamente. O capital privado está inundando empresas americanas que visam sacudir o campo de batalha convencional. Em dezembro, a Palantir, uma empresa de dados, se tornou a fornecedora de Defesa mais valiosa do mundo, suplantando a RTX, uma gigante aeroespacial. A capitalização de mercado da Palantir era uma fração da RTX quando a Rússia invadiu a Ucrânia em 2022. Agora é muito maior.

Soldados ucranianos em treinamento em Donetsk, na linha de frente da guerra na Ucrânia.  Foto: Evgeniy Maloletka/Associated Press

Dormindo na vanguarda

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No entanto, apesar de toda a experiência e inovação dos Estados Unidos, sem mencionar seu vasto orçamento de Defesa, as próprias forças armadas americanas estão com dificuldade para se adaptar. Mark Milley, até o final de 2023 o soldado mais antigo dos Estados Unidos, argumenta que a máquina militar que ele supervisionou por quatro anos é, em essência, inadequada para o propósito. Em um artigo escrito por ele me parceria com Eric Schmidt, ex-diretor executivo do Google e patrocinador de um fundo que investe em tecnologia militar, ele observa que as empresas americanas fazem os melhores sistemas de IA, mas suas forças armadas têm dificuldade para absorvê-los e implantá-los. Os soldados não têm o equipamento e o treinamento necessários para lidar com um campo de batalha saturado de drones. Os Estados Unidos levam anos para comprar armas que evoluem mês a mês. O Pentágono, a dupla conclui, precisa de “uma revisão sistêmica” na sua forma de lutar, naquilo que compra e na forma de fazer suas compras.

O novo presidente dos Estados Unidos parece concordar. Esta semana, Donald Trump anunciou que estava orientando Elon Musk, seu agente da mudança empunhando um triturador de papel, a investir contra o Pentágono. Pete Hegseth, o secretário de Defesa, reclamou em sua audiência de confirmação no mês passado que o Pentágono é “muito insular [e] tenta bloquear a entrada de novas tecnologias”. O novo conselheiro de segurança nacional, Mike Waltz, disse recentemente a um entrevistador: “Precisamos de grandes mentes e precisamos de líderes empresariais para entrar lá e reformar completamente o processo de aquisição do Pentágono”. Trump está nomeando figuras do setor de tecnologia, como Emil Michael, um ex-executivo da Uber, para cargos de defesa sênior.

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Eles têm muito trabalho pela frente. Para continuar sendo uma potência militar mundial, capaz de travar e vencer uma guerra com a China, eles precisarão mudar três coisas. O primeiro são as próprias forças armadas: como elas lutam e com o que lutam. O segundo é a indústria de defesa que lhes fornece equipamento, que precisa ser reequilibrada em direção a empresas mais novas e inovadoras. O terceiro é o menos compreendido e o mais resistente a mudanças, mas mais vital para consertar todo o resto: a politicagem na disputa por verbas nos gastos com defesa.

Há um debate acalorado a respeito de quanta mudança é necessária dentro das próprias Forças Armadas. Alguns observadores acreditam que a empolgação com a tecnologia é exagerada e que medidas ortodoxas de força militar, como táticas sólidas, números de soldados e estoques de munição, continuarão sendo mais importantes. A IA terá dificuldades com tarefas complexas e os comandantes não confiarão nela, argumentam eles; terrenos difíceis confundirão os robôs. De acordo com essa linha de pensamento, os EUA deveriam estar injetando dinheiro em um Exército maior, mais construção naval e mais mísseis de ponta.

No outro extremo estão os radicais que acreditam que tudo mudou. Um expoente franco dessa visão é Musk. Ele respondeu recentemente a uma exibição de drones chineses resmungando: “Alguns idiotas ainda estão construindo caças tripulados como o F-35″ — sugerindo que enxames de drones baratos poderiam facilmente derrotar um avião de guerra muito mais caro. Uma avaliação semelhante, embora menos abrasiva, pode ser encontrada em “Unit X”, de Raj Shah e Christopher Kirchoff, na qual os autores descrevem sua luta há uma década para estabelecer um braço voltado para o futuro do Pentágono chamado Unidade de Inovação de Defesa (DIU). Eles também acabariam com classes inteiras de armamento. “Em um mundo onde armas hipersônicas e mísseis antinavio podem facilmente destruir um navio da Marinha”, eles escrevem, “não faz mais sentido gastar bilhões de dólares construindo contratorpedeiros e navios de guerra”.

No meio estão modernizadores mais cautelosos. Eles acreditam que é muito cedo para destruir completamente a estrutura de forças existente dos EUA. A IA e a autonomia ainda não avançaram ao ponto em que o software possa lidar com todas as tarefas de um piloto humano, eles insistem. Embarcações de superfície não tripuladas funcionaram bem no Mar Negro, mas teriam dificuldade em cruzar o Pacífico ou navegar em tempestades no meio do Atlântico. O enxame de drones chineses, eles apontam, foi um show de luzes coreografado que teria ruído diante de um embaralhador de sinais. A física impõe limites rígidos: um pequeno drone nunca será capaz de transportar grande poder de fogo através dos oceanos enquanto evita as defesas aéreas chinesas. “Nem tudo precisa ser banhado a ouro e ter todas as capacidades”, diz Aditi Kumar, que foi vice-diretora da DIU até 20 de janeiro, “mas alguns sistemas precisam”.

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Nessa visão, os Estados Unidos precisam do que os especialistas chamam de “mistura de alto e baixo”, na qual um número modesto de plataformas e munições complexas e de ponta operam ao lado de um número muito maior de armas mais baratas, mais simples e, em sua maioria, não tripuladas. Armas sofisticadas ainda são essenciais — os ATACMS americanos e os mísseis anglo-franceses Storm Shadow fizeram picadinho das defesas aéreas russas na Crimeia, por exemplo. Mas eles podem ser usados para abrir caminho para os mais baratos. Ou ambos os tipos podem ser usados em conjunto, com drones de apoio voando ao lado de jatos tripulados, por exemplo.

O Exército de cachinhos dourados

A mistura ideal de forças é muito debatida. A questão de quais armas de ponta descartar e quais manter é especialmente delicada. Falando no ano passado, Milley propôs dobrar o número de submarinos. Essas são algumas das armas mais complexas e caras do arsenal americano, mas sua furtividade significa que podem sobreviver em um campo de batalha saturado de sensores. Mas ele lançou dúvidas a respeito dos porta-aviões. “Teremos um navio que navegará com 5.000… marinheiros e a coisa estará morta na água em 20 anos, com certeza”, ele argumentou. “Podemos fazer toda a mágica eletrônica [para bloquear mísseis], mas o ponto principal é: é um grande pedaço de aço que viu seus melhores dias na época da Batalha de Midway.” Milley estava similarmente cético a respeito do F-35: “Será que realmente achamos que uma aeronave tripulada vai ganhar os céus em 2088?” O risco dessa abordagem é que, se os Estados Unidos se encontrarem em guerra antes de 2030, eles podem ser pegos de surpresa — equipados com poucos sistemas herdados como o F-35 e sem tecnologia nova o suficiente para compensar.

Caça americano F-35 pousa em exibição de aviação militar na Índia.  Foto: Idrees Mohammed/AFP

Independentemente de qual seja o equipamento que os Estados Unidos comprem, a próxima questão é quem deve desenvolvê-lo. Os contratos de Defesa americanos geralmente envolvem um comprador, o governo, que define os requisitos e arca com todos os custos de pesquisa e desenvolvimento (P&D), o que ajuda a explicar seu conservadorismo a respeito do que compra. Essa configuração permite que empresas privadas assumam projetos com custos enormes e prazos longos, que de outra forma seriam muito arriscados: pense em porta-aviões ou bombardeiros. Mas é uma abordagem irremediavelmente inadequada para comprar equipamentos menores, com infusão de software, que precisam ser atualizados constantemente para permanecerem eficazes.

Em outubro, Shyam Sankar, diretor de tecnologia da Palantir, publicou um manifesto de 4 mil palavras intitulado “A Reforma da Defesa”. Ele lamentou que o número de grandes empresas de Defesa vendendo armas para o Pentágono tenha diminuído de 51 em 1993 para cinco hoje. “A consolidação gerou conformidade”, ele argumentou, “e expulsou os fundadores malucos e engenheiros inovadores”. Também mudou a identidade e o ethos dos fabricantes de armas. Sankar, que recusou um cargo importante no Pentágono de Trump, observa que antes da queda do Muro de Berlim, apenas 6% dos gastos com defesa americanos eram destinados a fabricantes de armas especializados. A maioria dos contratos era destinada a empresas que tinham armas comerciais e militares. A Ford fabricou satélites até 1990, ele observa, assim como a General Mills, mais conhecida por seus cereais e biscoitos, fabricou sistemas de orientação para ICBMs.

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O mundo comercial os manteve competitivos e os forçou a investir em pesquisa e desenvolvimento por sua conta e risco. Hoje, os fornecedores de Defesa especializados respondem por 86% dos gastos com Defesa. Michael Brown, ex-chefe da DIU e atual sócio da Shield Capital, um fundo de capital de risco, observa que dois terços dos negócios dos dez principais fornecedores do Pentágono são apenas de defesa; na China, o número equivalente é de 30%. “Pense na diferença em sua mentalidade como empresa.”

Conforme as armas se tornam cada vez mais dependentes de dados e programação, tanto o Pentágono quanto seus fornecedores estão sob pressão para absorver a mentalidade de risco do mundo da tecnologia e o rápido desenvolvimento na forma de atualizações frequentes e uso crescente de IA. “Estamos pegando componentes comerciais mais baratos e prontos para uso, usando software fornecido pelo governo”, diz Kumar, referindo-se ao desenvolvimento do drone da DIU, “e integrando os dois e desenvolvendo uma capacidade que tem um custo substancialmente menor do que o obtido pelo departamento antes”.

Grandes empresas do Vale do Silício estão começando a trabalhar com o Departamento de Defesa. Em 4 de fevereiro, o Google reverteu uma política de longa data que proibia o uso de suas ferramentas de IA para fins militares. Gigantes da tecnologia e os principais fabricantes de modelos de IA, como OpenAI, Anthropic e Meta, também adotaram negócios militares. “Eles não queriam fazer nada com o departamento de defesa”, diz Yili Bajraktari, que trabalhava no Pentágono e agora lidera o Special Competitive Studies Project, um grupo de pesquisa. “Agora vemos todas as empresas de tecnologia envolvidas. Elas estão entusiasmadas com o departamento.” Os investidores também. Os negócios de capital de risco na indústria de defesa cresceram 18 vezes na década mais recente, de US$ 500 milhões em 2014 para cerca de US$ 8,7 bilhões em 2024, de acordo com a Bain & Company, uma empresa de consultoria.

Dinheiro não compra prontidão

Será difícil, no entanto, aproveitar o entusiasmo corporativo dos Estados Unidos usando o sistema de compras do governo. O orçamento de Defesa dos Estados Unidos, de mais de US$ 800 bilhões por ano, é de longe o maior do mundo, mas alocá-lo é um processo ridiculamente lento e político. Em teoria, o governo estabelece sua estratégia de Defesa, os chefes de serviço dizem ao secretário de Defesa o que eles precisam para cumprir essas metas e o governo então solicita as quantias necessárias ao Congresso. Na prática, as coisas não são tão simples. Os chefes de serviço às vezes fazem lobby diretamente no Congresso pela aprovação de seus projetos de estimação. Os legisladores geralmente impedem o Pentágono de aposentar armas obsoletas se seu estado natal for prejudicado. E o Congresso microgerencia, permitindo que o Pentágono transfira internamente não mais do que US$ 6 bilhões dentro do orçamento, e mesmo assim apenas com a aprovação de membros seniores do Congresso para cada fatia de US$ 15 milhões ou mais.

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A consequência mais funesta de tudo isso é o atraso interminável. Os drones na Ucrânia têm seus softwares, sensores e rádios trocados a cada seis semanas ou mais. A IA de um ano é arcaica. No entanto, a lacuna entre o início do processo orçamentário do Pentágono e qualquer dinheiro que apareça é — no mínimo — de dois anos. O impasse político significa que os orçamentos raramente são aprovados a tempo, levando a “resoluções contínuas” nas quais novos programas não podem ser iniciados. No ano passado, houve um atraso de seis meses. Simplificar e acelerar tudo isso, diz Mike Horowitz, até recentemente um subsecretário assistente de defesa, é “o segredo para desbloquear o problema da inovação”.

É possível persuadir o Congresso a pagar por novos esquemas inovadores, mas é um trabalho árduo. Em agosto de 2023, Kathleen Hicks, a subsecretária de defesa na época, anunciou que o Pentágono planejava comprar “vários milhares” de drones facilmente atualizáveis para estarem prontos em dois anos. Esta “iniciativa Replicator” marca um “enorme progresso”, argumenta Horowitz, que ajudou a executá-la. “Comparado ao ‘padrão do Pentágono’”, ele argumenta, significando um equipamento caro e demorado para ser entregue, “o Replicator está entregando muita capacidade rapidamente a um preço relativamente baixo”. Brown observa que drones com um preço de US$ 17 mil cada durante sua gestão (2018-22) agora custam menos de um décimo disso.

Mas, para convencer o Congresso a alocar apenas US$ 500 milhões para o Replicator — cerca de metade de um por cento do orçamento de defesa — Hicks e sua equipe tiveram que conduzir quase 40 reuniões. Além disso, esse tipo de aquisição simplificada não está pegando no Pentágono, observa Brown: “Essa é a parte que tem sido decepcionante”. Outro exemplo é a Other Transaction Authority (OTA), uma inovação processual que permite que os departamentos comprem coisas sem ficarem atolados nas regras do Federal Acquisition Regulation, um conjunto de regulamentos barrocos de 2 mil páginas que gerou um baixo clero de oficiais de aquisição. O Pentágono gastou US$ 86 bilhões via OTAs até o momento, principalmente nos cinco anos mais recentes, observa Austin Gray, que dirige uma startup de defesa. Mas seu uso agora “estagnou”, lamenta Brown.

Os advogados do Pentágono temem balançar o barco, diz Brown. “Esse tipo de mentalidade de aversão ao risco se aplica a tantas coisas no departamento de defesa: não corra o risco e arrisque seu pescoço, porque ele pode ser cortado.” Sankar, da Palantir, lembra que quando o ChatGPT foi lançado e recebido com aclamação pública em 2022, sua empresa se ofereceu para incluir um chatbot semelhante gratuitamente em um produto que estava fazendo para o exército. O exército recusou porque não havia incluído um requisito formal para tal recurso no contrato original.

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Balançar barcos é uma especialidade de Trump e Musk. Muitos em sua órbita têm grandes ideias de reforma. Hegseth prometeu “contratar muitas pessoas inteligentes”. Até mesmo alguns ex-funcionários da presidência de Joe Biden acreditam que Trump poderia sacudir as coisas para melhor no Pentágono. “Se o pessoal do Trump buscar a inovação que alguns deles dizem querer”, diz Horowitz, “há uma oportunidade real — se eles conseguirem operar efetivamente a burocracia do Pentágono”.

Elon Musk, chefe do Departamento de Eficiência Governamental, fala com a imprensa no Salão Oval da Casa Branca.  Foto: Eric Lee/The New York Times

Destruição demais, criatividade de menos

Trata-se de um grande se. No momento, o foco do novo governo parece ser cortar custos em vez de reformar o processo de aquisição. “Vamos encontrar bilhões, centenas de bilhões de dólares em fraudes e abusos”, disse Trump a respeito dos gastos militares esta semana. Hegseth, por sua vez, parece preocupado principalmente em erradicar a lacração nas fileiras, embora se diga que ele conheceu recentemente o diretor executivo da Scale AI, uma empresa de dados. Mas mesmo que ele reúna as mentes mais brilhantes em TI, talvez elas não tenham uma fórmula vencedora para lidar com congressistas rebeldes.

No entanto, a tarefa dificilmente poderia ser mais urgente. “Não acho que entendemos o senso de urgência”, alerta Bajraktari. “Em Washington, não há a sensação de que há uma guerra na Europa continental... e provavelmente podemos ter uma guerra na Ásia.” As forças armadas dos Estados Unidos precisarão de uma revisão drástica se os Estados Unidos quiserem continuar sendo a potência preeminente do mundo. O tipo de inovação que é necessária deveria vir facilmente, dadas as forças corporativas americanas. No entanto, a política, como sempre, está atrapalhando. “Todos entendem o problema em que estamos agora”, diz Bajraktari. “Somos a potência global número um em software — e nossos militares não conseguem usá-lo.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL