THE WASHINGTON POST— Um ramo de tulipas enfeitava a janela do vagão de metrô em que Vladlena Igorivna, sua mãe e seus dois filhos pequenos dormem há mais de três semanas. Era um singelo lembrete do mundo lá fora, em meio a uma vida vivida inteiramente nos subterrâneos, desde o começo da guerra na Ucrânia.
Passeios até o topo das escadas rolantes são raros — e breves. Seus olhos, tão acostumados ao entorno obscuro, doem sob a luz solar. Seus filhos, Nazar, de 6 anos, e Makar, de 3, têm medo de sair da estação.
“Os meninos ouvem as bombas explodindo e querem voltar aqui para baixo”, explicou Igorivna, de 31 anos. “Todo dia sinto vontade de sair para caminhar, mas não consigo. Tudo o que quero é poder voltar para casa.”
A vida embaixo da terra
Há quase um mês, milhares de moradores de Kharkiv têm vivido nos subterrâneos, abrigados no sistema de metrô da cidade para se proteger da tempestade diária de projéteis de artilharia, foguetes e bombas de fragmentação. O ataque russo contra a Ucrânia deslocou 10 milhões de pessoas — um quarto da população do país — em questão de semanas.
Em Kharkiv, a segunda maior cidade ucraniana, pelo menos metade do 1,4 milhão de habitantes fugiu, de acordo com as autoridades, apesar de ninguém estar certo a respeito do número exato. A paisagem da cidade é sinistra e desoladora, o centro foi destruído por mísseis que explodiram em torno de sua enorme praça central.
Para alguns moradores que ficaram, o sistema de metrô, construído para resistir a uma guerra nuclear, parece o local mais seguro. Barracas e colchões ocupam as plataformas, enquanto vagões de metrô foram estacionados com as portas abertas, para dar mais espaço ao abrigo. Crianças correm pelas escadas rolantes, sua brincadeira predileta no vilarejo subterrâneo.
“Parece uma pequena cidade, e eu sou o xerife”, afirmou Olek Kucha, enquanto o filho mais novo de Igorivna, Makar pendurava-se em suas mãos. Cerca de 50 crianças vivem nessa estação, que abriga entre 200 e 300 pessoas. Elas fizeram desenhos expressando apoio às Forças Armadas ucranianas que foram pendurados em uma das colunas de mármore da estação.
Vagões-dormitório
Em vez de anunciar atrasos nos trens, o sistema de alto-falantes agora informa os moradores que voluntários chegaram com comida. Há chaleiras elétricas no local, mas falta um espaço para cozinhar. Cerca de 25 pessoas dormem no mesmo vagão que Igorivna, onde roupas são penduradas nos corrimões de apoio e caixas de comida cobrem o chão. “Estamos aqui há muito tempo, viramos uma grande família”, afirmou ela.
Igorivna, que é mãe solteira, afirmou que é difícil e perigoso demais sair de lá. Ela não tem carro, nem para onde ir com a família. Além disso, esta é sua cidade.
“Somos Kharkiv até a morte”, explicou a mãe dela, Yelena, de 61 anos. “Tínhamos uma cidade tão linda. Bombardearam nosso zoológico, nossas igrejas. Bombardearam tudo o que tínhamos de bonito.”
As janelas de seu apartamento foram estilhaçadas por uma explosão. Como muitas outras pessoas abrigando-se na estação, elas foram para os subterrâneos no primeiro dia da guerra, 24 de fevereiro. Naquela manhã, elas tinham despertado com uma explosão, mas ainda não conseguiam acreditar que a guerra havia começado.
Um mês num bunker
Somente quando Yelena leu as notícias que a ficha caiu. A família partiu para o abrigo no metrô e ainda não voltou para casa.
Num primeiro momento, as pessoas dormiam sentadas nos bancos dos trens e da estação. As plataformas ficaram tão lotadas que alguns tiveram de dormir no andar superior, próximo às catracas. Todos pensavam que passariam apenas uma ou duas noites por lá.
Igorivna estava sentada entre os filhos, que estavam deitados com a cabeça em seu colo, cada um de um lado. Agora, eles tiram uma soneca de tarde e não conseguem dormir à noite. E ficam doentes toda hora.
“É muito difícil fazê-los dormir de noite”, afirmou ela. “Normalmente eles não conseguem dormir.”
Medo de ataques contra civis
Policiais pediram que o nome desta estação de metrô, uma das muitas que servem de abrigo na cidade neste momento, não seja revelado pela reportagem, por receio de que o local possa entrar na mira das bombas russas. Originalmente, a estação foi projetada como abrigo das bombas ocidentais.
O metrô de Kharkiv foi inaugurado em 1975, durante a Guerra Fria, tornando-se o sexto sistema metroviário da União Soviética. Kucha apontou para as grossas portas de metal projetadas para proteger civis no caso de um ataque nuclear. Agora, elas são fechadas todas as noites, às 18h, quando a cidade entra em toque de recolher.
Quando Mazar e Nazar estão acordados, espalham alegria pelo vagão. “Ele grita, ‘Babushka, eu te amo’”, contou Valentina Krivokolisko, de 61 anos, que dorme num banco no fundo do vagão, sobre Mazar. “Ele irradia tanta positividade. Temos muita sorte por ele estar aqui.”
Mas Krivokolisko chora quando fala de seu neto de 6 anos, que está em outro abrigo, na periferia da cidade. Os bombardeios são mais pesados por lá. Ela vivia sozinha, e nenhum parente a acompanha no abrigo, exceto pelo novo amiguinho.
Gatos de estimação dão conforto aos donos
Dois gatos, Zefir e Abrikos — “Marshmallow” e “Damasco” — também ajudam. Marshmallow costumava evitar as pessoas, mas teve de se ajustar. Irina Martinova, de 49 anos, com seus cachos loiros e saltitantes, trouxe os bichos quando fugiu para o abrigo com o marido e o filho, no primeiro dia da guerra. O marido deixou a estação para continuar seu trabalho na estação de tratamento de água.
Ele tem de cumprir turnos de três dias consecutivos para conseguir folga, mas acaba dormindo no local todos os dias. Faltam funcionários, porque muita gente fugiu. Em seu ataque contra a cidade de Mariupol, no sul da Ucrânia, as forças russas se apressaram em atingir infraestruturas civis cruciais. “É claro que me preocupo”, afirmou Martinova. “Sempre digo para ele correr para o porão.”
Ressentimento contra os russos
Kharkiv suportou castigos de guerras anteriores, foi palco de quatro batalhas entre a Alemanha e a URSS na 2.ª Guerra, trocando de mãos duas vezes durante o conflito. A memória do Holodomor, ou “grande fome”, dos anos 30, quando 4 milhões de ucranianos morreram durante a coletivização forçada de fazendas promovida por Josef Stálin, ainda alimenta ressentimentos contra Moscou por aqui.
“Os russos odeiam a gente. Estou com raiva. Não com raiva das pessoas, mas odeio o inimigo, e isso vai durar muito tempo”
Valentina Krivokolisko, moradora de Kharkiv
Svetlana Yaroslavskaia, que dorme no mesmo vagão de metrô, contou que sua mãe e sua avó, consideradas parte da aristocracia, foram levadas para um gulag em 1937 e foram soltas apenas em 1953, após a morte de Stálin. “Minha mãe chorou a vida inteira essa dor”, afirmou ela. “Foram tempos muito difíceis, tempos brutais.”
“Existe uma memória geracional sobre o horror da guerra”, afirmou Martinova, comendo pipocas que haviam sido distribuídas no vagão de metrô. As três mulheres conversavam no centro do carro. Elas estavam chocadas com o fato disso estar ocorrendo outra vez. Kharkiv, uma cidade onde a língua russa predomina, fica a apenas 40 quilômetros da fronteira.
“Ninguém fala mal da língua russa, nós a adoramos”, afirmou Krivokolisko. “Mas os russos odeiam a gente.” Ela mostrou uma pequena imagem prateada de Maria e Jesus. Ela não era muito religiosa antes, mas a gente tem de acreditar em algum poder superior, afirmou ela. “Estou com raiva”, afirmou Martinova. “Não com raiva das pessoas, mas odeio o inimigo, e isso vai durar muito tempo.”
Os vagões são mais aquecidos, então ficam reservados para famílias com crianças pequenas e idosos. Alguns ocuparam lugares que apareceram quando outros partiram.
Crianças se distraem em meio à guerra
Mila, de 3 anos, a outra criança do vagão, foi caminhar do lado de fora com o pai, Stas Sachno, de 36 anos. A mulher dele foi para casa alimentar o pastor alemão da família e levar o cão para passear; o casal se reveza na tarefa. O prédio deles não possui abrigo antibombas, então o metrô virou sua casa em 25 de fevereiro, quando os bombardeios perto de seu apartamento ficaram altos demais.
Eles dormem próximo às tulipas. Voluntários trouxeram as flores para celebrar o Dia Internacional das Mulheres, em 8 de março. Se estivessem na superfície, as flores provavelmente já teriam murchado, mas aqui no fresco e escuro subterrâneo elas duraram mais.
Mila, que tem um arranhão no nariz porque caiu nas escadas rolantes, está doente outra vez, mas queria sair. Sachno a chamou de volta quando ela começou a se afastar dos degraus da estação. O ruído de duas fortes explosões soou, mas a menina de 3 anos não retrocedeu. “Ela sabe perguntar se a bomba é nossa ou do inimigo”, afirmou sua mãe, Alexandra Cakhno, de 28 anos, quando voltou à estação.
Eles não saem de Kharkiv por causa de seu cachorro e seus dois gatos. O peixe morreu porque o apartamento ficou frio demais depois que eles deixaram o local. O marido de Cakhno submeteu-se recentemente a uma cirurgia na coluna.
“Imagine os gatos, o cachorro a filha, e ele sem poder carregar nada”, afirmou ela. Mas Cakhno não tem certeza sobre quanto a família conseguirá aguentar. “Há momentos em que penso, ‘Vamos pegar os bichos e ir embora’”, afirmou ela. “Depois há momentos que penso, ‘Vamos ficar até o fim; por que devemos partir?’.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.