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Símbolo de morte e atrocidades na guerra da Ucrânia, Bucha vê a vida voltar aos poucos

Seis semanas se passaram desde que soldados russos se retiraram da cidade, deixando para trás covas coletivas repletas de civis, vias esburacadas e edifícios arruinados

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Por Jane Arraf

THE NEW YORK TIMES — Uma brisa tremula os ramos das cerejeiras que florescem em quase todos os quarteirões da pequena cidade, fazendo suas pétalas brancas cobrirem com um novo pavimento as ruas destruídas pelos tanques russos semanas atrás.

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A primavera chegou em Bucha nas seis semanas que se passaram desde que os soldados russos se retiraram da cidade, uma comunidade residencial nas imediações de Kiev, deixando para trás covas coletivas repletas de civis mortos, muitos deles mutilados, assim como vias esburacadas e edifícios arruinados.

Um semblante de vida normal voltou para a Bucha. Moradores têm retornado ao longo das semanas recentes para a cidade, que se apressa para reparar o dano físico impingido pelas tropas invasoras e seus canhões. Agora, nas arborizadas vias com os brotos da primavera (Hemisfério Norte), é difícil imaginar os horrores que ocorreram por aqui.

Yulia Kozak, de 48 anos, com sua filha Daryna, de 23 anos, e o neto Yehor, de 3, no prédio em Bucha onde vivia seu filho, o militar Oleksandr, que está desaparecido. Foto: David Guttenfelder/The New York Times Foto: David Guttenfelder/The New York Times

Em uma rua recentemente recapeada e repintada com linhas brancas, as escovas rodopiantes de uma máquina de limpeza varriam o que sobrou dos vidros quebrados e dos estilhaços metálicos. Em um dos bairros onde muitos dos 400 cadáveres de cidadãos ucranianos foram encontrados em abril, técnicos esticavam cabos para restabelecer o sinal de internet e, em uma das casas, um morador removia destroços de um tanque russo enquanto limpava seu jardim.

Varrer o que for possível dos rastros da destruição causada pela ocupação russa tem sido um passo importante para curar as feridas sofridas pelos moradores de Bucha, afirmou Taras Shapravski, funcionário da Câmara Municipal.

Shapravski afirmou que 4 mil moradores permaneceram na cidade durante a ocupação — assustados, muitos deles escondidos em porões sem comida suficiente. Mesmo depois que os soldados russos se retiraram, muitos civis continuaram traumatizados.

“Eles ficaram em péssima condição psicológica”, afirmou ele. “Especialistas nos explicaram que quanto mais rapidamente nos livrarmos de possíveis recordações da guerra, mais rapidamente conseguiremos livrar as pessoas dessa condição.”

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Trabalhadores reparam trilhos da principal estação de trem de Bucha. Foto: David Guttenfelder/The New York Times Foto: David Guttenfelder/The New York Times

Shapravski afirmou que o sinal de telefone foi restabelecido poucos dias depois dos russos partirem e depois o fornecimento de água e eletricidade foram normalizados. Ele afirmou que cerca de 10 mil moradores já retornaram — aproximadamente um quarto da população local antes da guerra nesta pequena cidade a 30 quilômetros de Kiev, a capital.

Em um sinal de que a vida está voltando ao normal, ele afirmou que o escritório de registros matrimoniais reabriu e quase todos os dias casais solicitam novas licenças de casamento.

Bucha é uma cidade para a qual muita gente se mudou em busca de um estilo de vida mais tranquilo, um lugar onde era possível curtir a família longe do frenesi da capital, onde muitos moradores trabalhavam. Era um lugar para onde habitantes de Kiev dirigiam nos fins de semana de clima agradável para almoçar.

Seis anos atrás, Sergo Markarian e sua mulher abriram o Jam Cafe, onde serviam comida italiana, tocavam antigos temas de jazz e vendiam potes de geleia. Ele descreveu o café como se fosse um filho e decorou o local com uma mistura eclética de centenas de quadros e fotos de clientes.

Quando a Rússia invadiu, Markarian, de 38 anos, levou de carro para a fronteira da Geórgia, onde ele nasceu, sua mulher e seu filho de 3 anos. Como é cidadão georgiano, Markarian poderia ter deixado a Ucrânia, mas voltou ao país para se voluntariar mandando comida para as linhas de frente.

Duas semanas atrás, quando a eletricidade foi restabelecida, Markarian voltou por conta própria para Bucha, para ver o que sobrou do café e reparar os prejuízos causados pelos soldados russos.

“Eles roubaram os talheres”, afirmou ele, fazendo uma lista dos itens perdidos. Ele afirmou que os soldados arrastaram para fora as cadeiras do estabelecimento, para usá-las em seus postos de controle, e roubaram o sistema de som do local. E, afirmou ele, apesar das privadas estarem funcionando, os russos defecaram no chão antes de partir.

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Dois dias antes de reabrir, na semana passada, o café e sua varanda estavam impecáveis, e Markarian experimentava o café de sua máquina para conferir se o sabor estava à altura.

“Muita gente já voltou, mas alguns ainda estão com medo”, afirmou Markarian. “Mas todos nós sem dúvida ficamos mais fortes do que jamais fomos. Vimos coisas que nunca pensamos que pudessem acontecer.”

Do outro lado da cidade, em uma calçada de lojas fechadas com telhados pontudos e vitrines lacradas por tábuas, o Mr. B — anteriormente o bar de drinques de Boris Tkachenko — foi reformado e transformado em um café.

Tkachenko, de 27 anos, voltou para Bucha um mês atrás, consertou o telhado, que assim como a maioria dos outros edifícios da rua parecia ter sido danificado por estilhaços, e descobriu que sua máquina de espresso ainda estava lá. E então reabriu o estabelecimento para vender café — mas se os clientes forem soldados ou trabalhadores de saúde, ganham café grátis.

Borys Tkachenko acabou transformando seu antigo bar em um café, onde militares e profissionais de saúde não pagam. Foto: David Guttenfelder/The New York Times Foto: David Guttenfelder/The New York Times

Tkachenko, que trabalhou em clubes na Flórida e no Canadá e estudou hotelaria na Suíça, abriu o bar com as próprias economias, em dezembro. Dois meses depois, a Rússia invadiu.

Ele soube que tinha de fugir com a família quando sua filha de 1 ano e 2 meses começou a correr pelo apartamento cobrindo as orelhas com as mãos e falando “bum, bum, bum” acompanhando o ruído das explosões.

Tkachenko foi de carro com a mulher e a filha para a fronteira com a Eslováquia, por onde a família conseguiu chegar à Suíça. Ele retornou para a Ucrânia para se voluntariar, ajudando a fornecer mantimentos para a linha de frente e civis deslocados.

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“Tínhamos grandes planos para este lugar”, afirmou Tkachenko, que, apesar de tudo, ostentava um enorme sorriso que combinava com a tatuagem em seu braço que diz: “Nascido para ser feliz”. Ele afirmou que quando a guerra acabar, provavelmente se juntará à mulher e à filha na Suíça. “Não vejo um futuro aqui neste momento.”

Cicatrizes profundas

Enquanto a frenética atividade de trabalhadores municipais e moradores tem ajudado a livrar a cidade de grande parte dos escombros provocados pela ocupação russa, as cicatrizes do que ocorreu aqui são profundas.

Em uma esquina tranquila, um ramo com um arranjo de dentes de leão e lírios do vale fora deixado na calçada como um modesto memorial. Volodmir Abramov, de 39 anos, afirmou que o memorial homenageava seu cunhado, Oleh Abramov, que foi tirado de casa sob a mira dos fuzis dos soldados russos, obrigado a se ajoelhar e acabou morto a tiros.

“Ele nem sequer foi interrogado”, afirmou Volodmir, cuja casa foi destruída por granadas arremessadas por soldados russos. Mas ele afirmou que isso não é nada em comparação ao sofrimento de sua irmã de 48 anos, Irina Abramova, que além de perder a casa perdeu também o marido.

Ao longo de quase duas décadas, Irina e seu marido construíram uma vida de amor e felicidade. Agora ela afirma desejar que os soldados russos tivessem atirado nela também. “Tento ajudá-la e vigio para que ela não se suicide”, afirmou o irmão Volodmir. “Digo-lhe que Oleh está vendo tudo lá do céu.”

Memorial marca local onde Oleh Abramov foi executado pelos soldados do lado de fora de sua casa, em Bucha. Foto: Daniel Berehulak/The New York Times Foto: Daniel Berehulak/The New York Times

Volodmir, que é vidraceiro, disse que está em dúvida a respeito de reconstruir ou não sua casa. “Quero deixar isso para trás”, afirmou ele.

Diante do necrotério municipal, onde peritos franceses e ucranianos ainda trabalham para identificar corpos de pessoas mortas nos massacres das tropas russas, um pequeno grupo de moradores se juntou, esperando informações a respeito do que aconteceu com seus parentes.

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Yulia Monastirska, de 29 anos, afirmou que buscava o certificado de óbito de seu marido, cujo cadáver foi um dos descobertos em abril. As mãos dele estavam amarradas, ele foi baleado nas costas e nas pernas, e um de seus olhos foi queimado, afirmou ela.

Monastirska afirmou que seu marido, Ivan, era operador de guindaste e desapareceu enquanto ela e sua filha de 7 anos, Oleksandra, se escondiam no porão do prédio em que viviam.

Oleksandra, usando óculos e tênis com desenhos de princesas, se apertava contra a mãe enquanto escutava detalhes que claramente já lhe haviam sido revelados.

“Até onde eu sei, todo mundo quer voltar, mas as pessoas ainda estão com medo”, afirmou Monastirska. “Nós nascemos aqui, vivemos aqui, muita coisa boa aconteceu aqui.”

À espera do filho

Yulia Kozak, de 48 anos, acompanhada de sua filha Darina, de 23 anos, e do filho dela, Yehor, de 3 anos, tinha ido ao necrotério fazer um teste de DNA para tentar descobrir se o corpo de seu filho desaparecido era um dos cadáveres não identificados guardados no local. Oleksandr, de 29 anos, já tinha lutado contra a Rússia em 2017.

Promotores de Justiça encontraram a carteira de identidade militar dele, suja e embolorada, em um porão no qual os russos mantiveram prisioneiros.

Chorando, Yulia contou que da última vez que conversou com o filho pelo telefone, em março, ele lhe disse que estavam atirando contra ele. Em seu apartamento, há um buraco de bala na janela sobre o qual o sinal da cruz ficou gravado.

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Yulia, que é cozinheira, afirmou que pretende ficar em Bucha até encontrar o filho. “Tenho certeza que ele está vivo, estou 100% certa”, afirmou ela. “Sinto que ele está vivo em algum lugar, só não sei onde.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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