Oficina acusada de escravizar costureiros produzia para Marisa e CA

06/05/2010

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Por adrianacarranca
Atualização:

Por Maurício Hashizume*, da Agência Repórter Brasil

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São Paulo (SP) - Registrada como Indústria de Comércio e Roupas CSV Ltda., a oficina de costura ligada à Marisa que foi flagrada com 17 trabalhadores imigrantes em condições análogas à escravidão produzia peças anteriormente para a C&A. A informação foi confirmada tanto pelo dono da oficina, o boliviano Valboa Febrero Gusmán, como pela própria rede varejista.

Operação comandada pela Superintendência Regional de Trabalho e Emprego de São Paulo (SRTE-SP), ocorrida em meados de fevereiro deste ano, encontrou um amplo quadro de irregularidades no local - desde "fortes indícios de tráfico de pessoas", registros de cobranças ilegais de dívidas dos empregados e salários muito aquém dos permitidos até condições críticas no tocante à saúde e segurança no trabalho, alojamentos completamente inadequados e jornadas exaustivas (detalhes mais abaixo na descrição das condições).

 

Quando da fiscalização, Valboa confirmou ter fabricado peças de vestuário durante os últimos anos (até 2009) para a Karvin que, por sua vez, atuou como fornecedora da C&A por cerca de 25 anos. Ele declarou inclusive que, entre outubro de 2009 e janeiro de 2010, representantes da companhia internacional com sede na Holanda fizeram vistorias das instalações da oficina situada no bairro de Vila Nova Cachoeirinha, na capital paulista.

À Repórter Brasil, a C&A não se esquivou da responsabilidade em relação à cadeia produtiva dos itens que comercializa, diferentemente de sua concorrente - que preferiu responder na ocasião que a "situação detectada pelos auditores não é de responsabilidade direta ou indireta da Marisa".

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A C&A admitiu inclusive que tomou conhecimento da presença da CSV na sua cadeia produtiva somente em outubro de 2009. "Até então, o fornecedor Karvin não havia comunicado à empresa a inclusão desta oficina na sua lista de subcontratados", acrescenta a companhia, que sustenta ter "advertido a Karvin de que este procedimento não seria tolerado novamente".

Desde 2006, a C&A mantém um segmento próprio para auditar a sua cadeia de suprimentos denominado Organização de Serviço para Gestão de Auditorias de Conformidade (Socam). Segundo a empresa, as vistorias são "aleatórias e não agendadas, com o objetivo de coibir qualquer tipo de mão de obra irregular e buscar a melhoria contínua das condições de trabalho".

A rede varejista confirma ter realizado uma primeira visita à CSV, por meio da Socam, em 23 de outubro de 2009. Nenhum estrangeiro ilegal foi encontrado, assegura a empresa, que verifica, entre outros, aspectos como a regularidade do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). 

Com o intuito de melhorar as condições de trabalho do local, a Socam estabeleceu, em 28 de outubro, um "plano de ação" para a CSV com diversas ações: disponibilizar e apresentar documentos e critérios adotados para cálculo e pagamento de salários; sinalizar todas as saídas; providenciar a recarga de extintores de incêndio e kit de primeiros socorros; arrumar e organizar a área de trabalho; proteger e melhorar disjuntores e instalação elétrica e providenciar sabonete líquido e papel toalha nos banheiros, entre outras.

"É importante ressaltar que o trabalho realizado pela Socam não tem caráter punitivo, exceto nos casos de infrações graves. O objetivo, além de coibir qualquer tipo de mão de obra ilegal, é também buscar a melhoria contínua das condições de trabalho dos seus fornecedores, informar e promover a transformação destes espaços", argumenta a C&A.

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Em janeiro de 2010, a Socam voltou à CSV para acompanhar a implantação do "plano". Segundo a empresa, novamente não houve registro de imigrantes sem documentação legal. "Constatou-se, porém, que o plano não havia sido implantado. O prazo inicialmente de 90 dias foi prorrogado pelo mesmo período, até abril de 2010. O não cumprimento implicaria na suspensão do fornecimento. No início de fevereiro, a CSV foi descadastrada pela Karvin, que constatou nesta data a existência de trabalhador sem documentação regularizada", relata a C&A.

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A empresa afirma ainda que o relacionamento comercial com a Karvin também foi temporariamente suspenso por conta de situações irregulares encontradas em outras oficinas subcontratadas. "O fornecimento ficará suspenso até que as irregularidades apontadas sejam resolvidas", prossegue.

Em depoimento à fiscalização, por seu turno, o proprietário da CSV alegou que o "preço muito baixo" pago pela Karvin (para fornecimento à C&A) por cada peça costurada teria sido um dos motivos para a descontinuidade do vínculo comercial. Questionada sobre a porcentagem de partilha média do preço final pago pelo consumidor - quanto seria destinado aos produtores (oficinas/fornecedores) e quanto ficaria mais especificamente com o varejo -, a C&A afirma seguir "os valores que são praticados pelo mercado".

"É importante ressaltar que o preço de venda não se justifica unicamente com a produção da peça, mas inclui várias despesas na operação como impostos, salários, logística, infraestrutura", adiciona a empresa. 

A Karvin foi procurada para se pronunciar sobre o caso e prometeu atender a reportagem. Após o primeiro contato, porém, a representante da empresa não foi mais encontrada nos diversos telefones mantidos pela fornecedora de peças de vestuário com base no bairro do Bom Retiro.

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Com relação aos gastos com publicidade (recentes campanhas da C&A foram protagonizadas por estrelas internacionais da música pop) e à possibilidade de deslocar parte desses recursos para recompensar aqueles que trabalham na cadeia produtiva dos produtos vendidos nas lojas, a C&A se restringiu apenas a declarar que "esta informação [sobre publicidade] não é pública" e que a mesma é "considerada estratégica para a companhia".

VistoriasDesde 2006, conforme números divulgados pela C&A, a Socam já realizou mais de 6 mil visitas em fornecedores e subcontratados. Em casos de infrações graves (como o trabalho de imigrantes ilegais e o trabalho infantil), informa a rede, a Socam pode cancelar de imediato as compras do fornecedor. Assim como no caso da CSV, podem ser propostos também planos de ação corretivos, com meta e prazo determinados. O descumprimento do combinado, sustenta a companhia, pode igualmente implicar na suspensão do fornecimento.

Neste período, cerca de 100 fornecedores foram bloqueados pela Socam, ou seja, tiveram o fornecimento suspenso. "As oficinas (subcontratados) não são bloqueadas pela Socam, mas pelo fornecedor, que é responsável pelos seus subcontratados", completa a rede. Por "uma questão de relação comercial com nossos fornecedores", a C&A - que se coloca publicamente como "pioneira no Brasil, entre as empresas de varejo de moda, a possuir uma organização [específica, como a Socam]" - prefere não divulgar a quantidade de planos de ação elaborados junto a fornecedores e subcontratados.

A adesão ao "Código de Conduta" e às "Condições Gerais de Fornecimento" - que contêm cláusulas que exigem o cumprimento da legislação trabalhista vigente - é uma das premissas para que uma confecção se torne fornecedora, reforça a C&A. "Cabe ao fornecedor a decisão de escolha de sua rede de subcontratados. Porém, estes devem ser listados e informados à empresa, previamente ao início da relação comercial com a C&A. Também é de responsabilidade do fornecedor manter sua lista de oficinas subcontratadas atualizada. Tanto o fornecedor quanto a Socam realizam as vistorias nas oficinas", emenda. Estima-se que o investimento na área tenha sido de R$ 7 milhões. Somente em 2009, teriam ocorrido 2,1 mil vistorias.

Em 2007, a C&A, assim como a Marisa e outras empresas do ramo, assinou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público do Trabalho (MPT) com o compromisso de evitar ligações comerciais com oficinas de costura envolvidas na exploração de trabalho análogo à escravidão e de viabilizar auditorias períódicas de suas cadeias produtivas.

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Convidadas a fazer parte do Pacto Contra a Precarização, e pelo Emprego e Trabalho Decentes - Setor das Confecções, contudo, a C&A não aderiu. "A assinatura ao pacto deve ser analisada considerando o setor como um todo, e não somente com adesões pontuais, que não irão produzir os resultados almejados", rebate a rede. "A C&A não acredita que a adesão de uma só companhia poderá surtir efeitos reais no setor. É preciso um esforço conjunto e estamos em contato constante com os demais players do nosso setor de modo a conseguir um esforço conjunto neste sentido". 

A implantação de um sistema de certificação com vistas a garantir melhores condições de trabalho nas cadeias produtivas está sendo discutida no âmbito da Associação Brasileira do Varejo Têxtil (Abeim) - que engloba outras redes como a própria Marisa, Riachuelo e Renner. Uma das consultorias envolvidas na iniciativa é a internacional Bureau Veritas, também citada no relatório de fiscalização do caso que envolveu diretamente a Marisa.

Para fazer vistorias semelhantes aos que a Socam faz para a C&A (até em cumprimento ao TAC celebrado com o MPT em 2007), a Marisa contratou a empresa Bureau Veritas, fundada na Bélgica, em 1928. Na avaliação que fez das condições gerais de trabalho na trinca de fornecedores formada por Dranys, Elle Sete e Gerson de Almeida (que tinham contrato com a Marisa e subcontratavam a CSV) em maio e setembro de 2009, a consultoria aprovou incondicionalmente as instalações das fornecedoras que cuidavam mais do arremate das peças, a despeito dos diversos problemas (como risco de incêndio, desorganização do ambiente e falta de ventilação) verificados pela operação fiscal, que visitou todos os participantes da cadeia produtiva. 

Mesmo sem visitar as terceirizadas (que fazem a parte mais substantiva do processo: transformam cortes de tecidos em peças de vestuário quase prontas) da Dranys/Elle Sete/Gerson de Almeida, os auditores da Bureau Veritas atestaram que, no quadro geral, as auditadas "atendiam" às condições de regularidade quanto à ausência de trabalho forçado. Contatada pela reportagem, a consultoria optou por não se pronunciar. Repercussões Quase três meses depois da fiscalização e mais de 45 dias após a divulgação na Repórter Brasil, o flagrante de trabalho escravo de imigrantes envolvendo as lojas Marisa continua gerando repercussões. 

Advogados da Marisa negociam o estabelecimento de novos padrões de conduta para evitar a ocorrência de flagrantes e para contribuir n sentido de qualificar as condições de trabalho no conjunto da cadeia das confecções.

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"Estamos envidando todos os esforços possíveis e imagináveis para reunir o maior número de pessoas em torno desse caso com a finalidade de atingirmos um grau correto e positivo de eficácia da nossa ação fiscal. Por isso, toda a movimentação para trazermos os mais diversos órgãos públicos e entidades da sociedade civil", comenta Renato Bignami, auditor fiscal do trabalho da SRTE/SP que esteve à frente da operação que rastreou a cadeia produtiva a partir da oficina de costura CSV.

A punição apenas da Marisa, salienta Renato, não pode ser considerada satisfatória. "É necessário buscarmos soluções para que esse caso não volte a se repetir e para corrigirmos um processo crônico de fuga para a clandestinidade, informalidade e irregularidade que se abateu sobre esse setor", complementa. A OIT, o Instituto Ethos e a Abeim conversam para estabelecer processos de responsabilidade social que possam consolidar avanços no setor.

 
Detalhe de um dos alojamentos: inadequação e exposição a doenças (Foto: Maurício Hashizume)

 

 

Paralelamente, os participantes do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes se reuniram no auditório da Defensoria Pública da União (DPU), na última segunda-feira (3), para fazer avaliações e dar continuidade ao processo de articulação por melhorias para os trabalhadores do setor. Estiveram presentes representantes do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e das associações de coreanos, bolivianos e paraguaios, além do Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco, dos Sindicatos das Indústrias do Vestuário no Estado de São Paulo (Sindivestuário), do Serviço Pastoral do Migrante (SPM), do Centro de Apoio ao Migrante (Cami), da Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), da Receita Federal, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Comissão Municipal de Direitos Humanos (CMDH), da ONG Repórter Brasil e da Procuradoria Regional do Trabalho 2ª Região (PRT-2), na pessoa de Vera Lúcia Carlos, propositora dos TACs firmados com as redes varejistas.

Em Brasília (DF), a deputada federal Janete Capiberibe (PSB-AP) levou o caso aos colegas parlamentares em pronunciamento no Plenário da Câmara, no dia 7 de abril. Após fazer menção à fiscalização da oficina CSV, a congressista propôs boicote à Marisa "até que sejam garantidos os direitos trabalhistas de todos os colaboradores e melhor distribuição do lucro".

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Dois dias depois, o Sindicato dos Comerciários de Fortaleza (CE) organizou um protesto contra o trabalho escravo de imigrantes em frente à loja da Marisa no centro da capital cearense. Os sindicalistas chamaram a atenção de populares e distribuíram exemplares da edição do jornal Brasil de Fato que reproduziu conteúdo publicado pela Repórter Brasil.

De acordo com Romildo Miranda, do sindicato e da Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e Serviços (Contracs), houve uma reunião com enviados da rede de varejo Marisa há cerca de 15 dias em que a questão foi tratada. "Segundo eles [da empresa], a questão foi resolvida. Mas não paramos por aqui. Se ficarmos sabendo de mais denúncias, voltaremos a nos mobilizar. Insisto mais uma vez: não paramos por aqui", destacou o sindicalista.

 

Condições encontradas na oficina de costura CSV
Nenhum dos imigrantes que operavam máquinas na oficina CSV tinha Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) assinada e pelo menos um deles sequer estava regularizado junto à Polícia Federal (PF). Segundo a fiscalização, um os trabalhadores bolivianos não tinha sequer 18 anos completos.Foram apreendidos vários cadernos com anotações de "taxas" ilegais de "passagem", "fronteira" e "documentos") e registros de "salários" de R$ 202 e de R$ 247, menos da metade do salário mínimo (R$ 510) e menos de um terço do piso da categoria (R$ 766).A estrutura (instalações elétricas, móveis etc.) da oficina não seguia os padrões mínimos exigidos. Uma criança, filha de uma das costureiras, estava exposta a acidentes com o maquinário. A jornada de trabalho começava às 7h e chegava até às 21h. As refeições eram preparadas improvisadamente nos fundos do mesmo cortiço do local de trabalho. O irmão do dono da oficina permanecia o tempo todo junto com os trabalhadores, atuando como "vigia".Em apenas um cômodo mal iluminado nos fundos de um dos "alojamentos", construído para ser uma cozinha, sete pessoas dormiam em três beliches e uma cama avulsa. Infiltrações, umidade excessiva, falta de circulação de ar, mau cheiro e banheiros precários completavam o cenário. Não havia separação adequada das diversas famílias alojadas na mesma construção. Na avaliação da médica e auditora fiscal Teresinha Aparecida Dias Ramos, que fez parte da comitiva e checou até a receita médica de uma das trabalhadoras que apresentava uma doença de pele, as vítimas de trabalho escravo na CSV estavam expostas a distúrbios respiratórios, problemas ergonômicos, e justamente a enfermidades dermatológicas, além das condições psicossociais indesejáveis, por causa do medo constante.

 

 

 

*O jornalista da Repórter Brasil acompanhou a fiscalização da SRTE/SP como parte dos compromissos assumidos no Pacto Contra a Precarização e pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo - Cadeia Produtiva das Confecções

 

 

 

 

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