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Análise: Brexit se consuma da forma menos ruim para britânicos e europeus

O comércio não ficará livre de atrito; haverá formulários alfandegários, verificações regulatórias e outras barreiras não tarifárias

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Por Lionel Laurent

A imagem que caracterizou o acordo comercial da Grã-Bretanha com a União Europeia (UE) na véspera de Natal foi um Boris Johnson radiante com os polegares para cima. Não havia fotos comemorativas de nenhum outro representante do mesmo continente.

Chegar a este ponto é uma vitória por si só para o Reino Unido. O fim do drama do Brexit deve permitir que os britânicos voltem a uma atmosfera política mais respirável depois de quase cinco anos falando sobre o mesmo tema - além da covid-19. Evitar a confusão de uma "ausência de acordo" salvará a economia de um choque de longo prazo que pode ter custado 3% do produto interno bruto (PIB). Até Nigel Farage está satisfeito.

O primeiro-ministro Boris Johnson. Foto: Leon Neal/Pool via REUTERS

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A UE, comparativamente com menos a perder, tem menos motivos para se alegrar. Os custos da ausência de acordo para o bloco teriam sido relativamente administráveis, em cerca de 0,5% da produção potencial. Também é difícil vender a saída de um grande Estado-membro como uma vitória, por mais difícil que seja a relação histórica. A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, expressou "alívio" e "grande satisfação" ao anunciar o acordo, enquanto seu principal negociador, Michel Barnier, reiterou sua visão do Brexit como uma "perda" para ambos os lados.

Ainda assim, enquanto as autoridades em Paris, Berlim e outros lugares passam o pente fino pelas letras miúdas das 1250 páginas do acordo comercial, as capitais da UE devem sentir que receberam a maneira menos ruim de encerrar o capítulo de início do Brexit. O acordo consagra o comércio de bens sem tarifas e cotas, o que fará uma grande diferença para vários países membros.

Novos impostos agrícolas afetariam fortemente a Irlanda, já que 40% de suas exportações agroalimentares vão para o Reino Unido, seu maior parceiro comercial. As tarifas custariam à Alemanha 8,2 bilhões de euros (US$ 10 bilhões) de suas exportações para a Grã-Bretanha, e à França 3,6 bilhões de euros, segundo a Euler Hermes.

Embora o nível de acesso oferecido ao mercado único da UE de 450 milhões de pessoas seja sem precedentes para um não-membro, o bloco mal abriu as comportas. O comércio não ficará livre de atrito. Haverá formulários alfandegários, verificações regulatórias e outras barreiras não tarifárias. O acordo não cobre serviços, o que significa que o comércio financeiro e os fluxos de dados estão nas mãos de Bruxelas.

O francês Emmanuel Macron, para quem a pesca se tornou a fronteira simbólica do Brexit, ficará feliz com o fato de as frotas do Reino Unido levarem apenas 25% da captura atual da UE em águas britânicas, em vez dos 80% exigidos inicialmente por Johnson. Os britânicos tiveram que desistir.

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Garantir que o acordo tenha força agora será a prioridade para Ursula Von der Leyen. Proteger o mercado único foi fundamental para a UE e um ponto de convergência para seus 27 membros contra a ameaça britânica de competir de frente com uma iniciativa de desregulamentação de uma "Cingapura no Tâmisa".

Uma análise do tratado provisório por meus colegas da Bloomberg News descreve como o Reino Unido e a UE concordaram em manter seus padrões de transparência ambiental, social, trabalhista e tributária para garantir que não se prejudiquem. A punição são tarifas, sujeitas a arbitragem por painel independente. Isso soa mais como ser torturado constantemente por aborrecimentos mesquinhos - como é o caso nas discussões comerciais de longa data existentes na UE, como aquela entre a Airbus e a Boeing -, mas, se mantida, oferece um meio de dissuasão sensato.

Questões geopolíticas e estratégicas difíceis aguardam Bruxelas e os Estados-membros. O Brexit redesenha o mapa do poder europeu, reduzindo pela metade o número de assentos permanentes da UE no Conselho de Segurança das Nações Unidas e 40% da capacidade militar do bloco. Retira 14% do PIB da UE, tornando-o menor como mercado único, e priva-o de mais de US$ 100 bilhões em recursos orçamentários.

Ao mesmo tempo, a saída de um dos integrantes menos entusiasmados da UE - um país que instintivamente se opõe a uma união mais profunda - é uma oportunidade de criar um bloco mais ambicioso e assertivo, que merece um lugar na mesa das superpotências ao lado dos EUA e da China. É difícil acreditar que o novo fundo de emergência para a covid-19 de US$ 859 bilhões da UE, um acordo histórico para transferências fiscais dos Estados-membros mais ricos para seus países parceiros menos afortunados, teria sido possível com os britânicos a reboque.

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Não são apenas Johnson e seus colegas apoiadores do Brexit que querem "retomar o controle". A UE também quer criar um bloco mais "soberano" que seja menos dependente de outros (principalmente dos EUA) para sua segurança e prosperidade. A forma como se impõe ao vizinho Reino Unido, cuja própria visão de soberania parece ser a liberdade de escapar às regras incômodas da UE, será um teste importante. A ameaça anterior de Johnson de rasgar os termos da retirada do Brexit, incluindo o acordo para uma fronteira suave com a Irlanda, mostra as potenciais armadilhas. Ter um acordo comercial em vigor não restaurará a confiança da noite para o dia, mas ajuda.

Ninguém espera um novo despertar repentino nas relações entre UE e Reino Unido. Mas o acordo após 11 meses de negociações evita um resultado pior e mais confuso, enquanto permite que o bloco monitore e limite a competição injusta dos britânicos e fornece um caminho para mais cooperação. Às vezes, a opção menos ruim é tudo o que existe. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA