Quando o debate político argentino tinha como foco o comparecimento de Cristina Kirchner na terça-feira a tribunais da Justiça Federal em um processo relacionado à contratação de obras públicas na província patagônica de Santa Cruz durante seu governo, a ex-presidente fez um movimento inesperado no tabuleiro do xadrez político argentino: anunciou seu ex-chefe de gabinete Alberto Fernández como candidato a presidente e ela mesma como candidata a vice-presidente.
Sem impedimentos legais para se apresentar como candidata e liderando as pesquisas de opinião para a presidência, a atitude de Cristina de ceder a cabeça de chapa em um país com uma ampla tradição hiperpresidencialista – onde o primeiro mandatário reúne grande parte dos poderes reais e simbólicos – é um caso atípico.
Alberto Fernández é um advogado que teve protagonismo no governo de Néstor Kirchner (2003-2007) e seguiu como chefe de gabinete no começo do governo de Cristina até renunciar em julho de 2008, após romper com o governo na crise do tarifaço de produtores rurais e no confronto com os principais grupos de mídia do país. É raro na Argentina que um funcionário do alto escalão do governo deixe o cargo e volte para casa.
Quase 11 anos depois, com o peronismo dividido em torno de sua figura sempre polêmica, sedutora e desafiante, Cristina Kirchner deixa problemas para todos seus rivais com seu passo para trás. O governo de Mauricio Macri perde sua principal inimiga – a adversária da qual não conseguiu deixar de falar nos últimos quatro anos.O principal argumento do governo contra a manobra de Cristina será o de que ela controlará o governo das sombras.
Já o peronismo não kirchnerista, reunido no grupo heterogêneo “Alternativa Federal”, começa a apresentar fissuras, já que a figura de Alberto Fernández se apresenta bastante atraente or sua capacidade de negociar, seus modos amáveis e vocação para o diálogo – quase o contrário de sua companheira de chapa, que deve trazer consigo, por sua vez, um tsunami de votos na grande Buenos Aires e nas províncias mais afastadas do país.
Mauricio Macri, acossado pela inflação em alta, uma recessão com poucos precedentes e uma luta para deter a alta do dólar, é desafiado por dirigentes de seu partido, o Cambiemos, para ceder sua candidatura para a governadora da Província de Buenos Aires, María Eugenia Vidal, e para ampliar suas alianças políticas.
Até hoje, Macri tem resisistido. Levar Cristina ao banco dos réus era quase apresentado como seu principal feito. Mas ela já não é mais seu principal adversário. Este agora se chama Alberto Fernández.
* É PROFESSOR DA UNIVERSIDADE DE BUENOS AIRES
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