Argentina votará o tamanho do Estado, mas implementação de propostas ainda é dúvida, diz analista

Vontade popular e atuação das instituições como Congresso e o Judiciário interfere na distância entre as promessas de campanha e o que é possível tirar do papel de fato

ENTREVISTA COM

Gustavo Morales OliverDiretor executivo de Riscos e Investigações da FTI Consulting

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Por Gabriel Bueno da Costa
8 min de leitura

Na Argentina, os eleitores vão decidir no próximo fim de semana o tamanho do Estado na escolha entre o libertário Javier Milei e o atual ministro da Economia, Sergio Massa. A avaliação é do diretor executivo de Riscos e Investigações da FTI Consulting, Gustavo Morales Oliver que, em entrevista ao Broadcast, ressaltou os desafios que o vencedor, independente de quem seja, terá a partir de dezembro, quando o novo presidente tomará posse. O analista ressalta a distância entre o que se defende na campanha e o que de fato é possível implementar, a depender dos contextos, da vontade popular e da atuação de diferentes instituições, como o Congresso e o Judiciário. Além disso, vê como improvável que a relação com o Brasil, comercial inclusive, deixe de ser prioritária para o próximo governo, vença Massa ou Milei.

Leia a seguir os principais trechos.

O senhor tem uma série de contatos no empresariado da Argentina. Como em geral diria que eles veem o cenário político e os possíveis impactos econômicos e financeiros com o segundo turno eleitoral, em linhas gerais?

O que os empresários veem neste momento na Argentina é muita incerteza. Isso significa que não está claro o que pode ocorrer na eleição presidencial e nos meses seguintes. Há uma alternativa proposta pelo candidato governista, que tem a ver com uma economia que segue as pautas existentes hoje, principalmente uma economia liderada pelo governo, com muita participação estatal, subsídios, regulações de preços e de exportações. A outra alternativa, liderada por Milei, propõe uma economia não liderada pelo governo ou o Estado, mas uma economia de mercado mais livre, mais pura. A primeira alternativa tem sido vista durante muitos anos, com uma posição muito forte do Estado; a outra é uma opção que o país viu durante poucos anos, principalmente nos anos 1990, sob a presidência de Carlos Menem (1989-1999). Como as duas alternativas são tão distintas, é difícil se preparar para as duas.

Pessoas caminham em frente à Casa Rosada, sede do governo argentino. Foto: REUTERS/Cristina Sille

Como podemos pensar nos próximos anos na Argentina dessa perspectiva, em caso de ganho do governista ou da oposição?

Em caso de ganho de Massa, tudo leva a pensar em uma continuidade no tipo de política vista nos últimos anos. Se ganha a oposição, as ideias podem estar claras, mas a questão é que é preciso implementá-las, então é preciso ser muito cuidadoso e não se apressar a dizer que, caso ganhe a oposição, a Argentina mudou. Para que uma mudança exista no nível do país e de sua estrutura econômica, tem de ser respaldada pela sociedade e, além disso, pelo Congresso, que está dividido. O respaldo da sociedade tem a ver com que, se Milei ganha, as mudanças que ele se propõe a implementar efetivamente podem se implementar no nível das instituições ou no político, ou seja, o Congresso, reguladores, o Estado argentino é muito grande, então cada um dos elementos do Estado deveria acompanhar. A oposição não tem maioria no Congresso, mas seria necessário implementar mudanças por meio de instituições e que depois a sociedade respalde essas mudanças na vida cotidiana, ou seja, votar por uma economia de mercado. Para sustentar que houve uma mudança, seria preciso ver o que acontece no mínimo nos próximos dois ou três anos. Para os empresários, hoje a Argentina é uma economia que sabem como funciona, gostem ou não dela, e a maioria deles aprendeu a operar nessa economia. Isso se contrapõe a uma alternativa diferente, que explica com clareza suas ideias e objetivos, mas é preciso ver como pode implementá-los, ou seja, implementar mudanças é uma questão fática, propor ideias é uma questão conceitual.

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No caso de uma vitória de Massa, é de se esperar continuidade, mas também alguma mudança, não?

Massa descreve um cenário que pode ser distinto do atual, do ponto de vista político. Recentemente, disse que ele será o líder do governo, não outras pessoas dentro de seu espectro. Mas é certo que seu enfoque de como o Estado tem de participar na economia é o tradicional enfoque peronista, o mesmo que tem tido o kirchnerismo, ou seja, de um Estado que participa ativamente na economia e na vida da gente para ordenar a sociedade. Nas últimas décadas, em geral a maioria do tempo se defendeu que a economia esteja centralizada no Estado, não no mercado. Por isso digo que não se trata tanto de uma figura política surgir e mudar o país, é preciso observar o povo, o que defendem as pessoas.

Ministro da Economia Sergio Massa fala com a imprensa um dia depois da vitória no primeiro turno. Foto: REUTERS/Cristina Sille

Há um debate sobre um recorte de gerações, com os mais jovens mais propensos a votar em Milei.

Os que têm menos de 25 ou 30 anos só viveram essa versão, do Estado como o centro da vida da sociedade, nunca viveram esta outra. Em caso de vitória de Milei, experimentariam essa outra versão. O verdadeiro desafio é se de fato seguiriam respaldando esse caminho. Mas o realmente interessante é que esses jovens estão dizendo: o resultado que vejo hoje de ter o Estado no centro da vida social não me agrada, quero ver algo distinto.

Milei, desde o fim do primeiro turno, fez um movimento ao centro, a aliança com Patricia Bullrich. Acredita que isso poderia ocorrer em um governo dele?

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Governar é uma tarefa bastante distinta de ganhar eleições. Do lado de Massa, a campanha tem sido mostrar às pessoas o que ele acha que se perderia com uma economia de mercado, os subsídios e a proteção do Estado. Milei busca agora discursos mais moderados, mais tranquilos. O que escutamos no mercado é que, por mais que Milei queira, não tem as ferramentas institucionais para fazer mudanças muito rápido, pois as mudanças têm de passar pelo Congresso, o que significa a necessidade de ter apoio de outras forças, o que significa cedo ou tarde negociar. Em um eventual governo Milei, seria uma força política nova, uma dinâmica nova das interações e é preciso ver como isso funciona, o desafio é enorme e para mim a grande questão não é se teria capacidade intelectual ou o conhecimento técnico, mas em que ritmo poderiam avançar justamente pelos desafios institucionais e que respaldo teria da população, caso conseguissem ganhar a eleição presidencial. Há uma frase habitual em Wall Street: antes de melhorar, essa situação continuará a piorar. Esse é um cenário que sem dúvida está se colocando. É preciso fazer correções, e essas correções vão gerar mais dor.

Javier Milei desfila em evento de campanha na província de Buenos Aires. Foto: LUIS ROBAYO / AFP

Reportagem da agência Reuters em um evento empresarial da Argentina mostrava quase 100% de empresários locais contrários a uma dolarização. Como vê essa perspectiva?

A primeira questão é se ele pode fazer isso. Todos os economistas dizem que, primeiro, é preciso ter dólares. Milei responde dizendo que gerará condições para a vinda desses dólares ao país. Superada essa discussão, isso significa uma mudança de regras muito importante. Por um lado, o governo não poderia fazer o que realiza hoje: imprimir moeda para seguir pagando a dívida. Há distintos aspectos do gasto, como subsídios que não poderiam ser dados. Para os empresários, não haveria o benefício de desvalorização da moeda para ser mais competitivos em dólares no mercado internacional. Isso seria uma mudança do jogo muito importante para as empresas que fazem negócios na Argentina. Será preciso um ajuste forte na forma de operar.

No Brasil, há um foco importante também nas eventuais mudanças para o Mercosul ou nas relações bilaterais. Como vê esses pontos?

Como os governos não poderão impor ao povo as condições atuais da democracia, um sistema que ele não respalde, não poderão impor um sistema econômico em termos de comércio internacional. O Brasil tem sido o principal sócio econômico da Argentina há décadas. Isso tem a ver com a localização, o tamanho do mercado brasileiro e os bens e serviços que o Brasil consome e os que a Argentina produz. Essa relação se manterá, não vai mudar. Mais Mercosul ou menos Mercosul, isso tem a ver com o formato dessa relação. Mas a relação comercial com o Brasil é essencial para a Argentina e existe no nível de distintas indústrias, é uma relação muito bem arraigada. Desarticulá-la seria muito difícil e tremendamente negativo. É possível discutir as formas, se com Mercosul, tratado bilateral, mas a relação é forte e essencial, não vejo nenhum protagonista, de distintos setores, preocupado com eventual dano à relação com o Brasil, ninguém está pensando nisso.

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