Arrasada por guerra e bloqueio, Gaza começa a retomar a rotina

Mercados são abastecidos e palestinos voltam para casas destruídas, em meio à dor das mortes e dos prejuízos

PUBLICIDADE

Por Gustavo Chacra
Atualização:

Galinhas mortas, crianças comendo morango direto do pé, muitas mulheres religiosas com o rosto coberto, poucas jovens modernas de cabelo solto, homens com barba estilo "xeque", adolescentes com camisetas de futebol falsificadas, estradas esburacadas, prédios destruídos, praias vazias, mesquitas cheias de gente e ruas cheias de lixo. Tudo isso divide espaço com carros e caminhões da ONU e de ONGs, que circulam com ajuda humanitária para 1,5 milhão de palestinos, sobreviventes das três semanas de guerra entre o Hamas e Israel. Esta é a Faixa de Gaza, um território descrito por alguns como uma prisão; por outros, como um celeiro de terroristas. Um lugar de onde os moradores não podem sair porque suas fronteiras estão fechadas. Muitos não têm estudo, mas sabem descrever com detalhes o armamento usado por Israel para alvejar residências supostamente usadas por militantes do Hamas, que disparavam foguetes contra cidades israelenses, como Sderot e Ashkelon. A poucos quilômetros de distância, essas cidades parecem ficar em outro planeta quando se cruza a moderna e equipada Passagem de Erez, finalmente aberta para os jornalistas estrangeiros verem a destruição dos bombardeios. Para entrar no território palestino, depois das muralhas de concreto de Israel, é preciso mostrar o passaporte para um funcionário do que parece ser a "república islâmica de Gaza". Ele é um militante do Hamas. Não usa uniforme, apenas barba. Não faz perguntas, mas encara o jornalista antes de dizer yala ("vai", em árabe) para o motorista. Plantações de morango enfeitam o cenário em alguns trechos dessa faixa costeira, de cerca de 40 km de comprimento por 10 km de largura. Na ofensiva, muitos morangueiros foram arrasados por buldôzeres e tanques israelenses. Algumas estufas de flores também estão no chão. Esse era um dos poucos produtos de exportação do território - que não tem porto, nem aeroporto e depende da boa vontade de seus vizinhos para comprar e vender suas mercadorias. Nos últimos meses, houve mais má vontade. ?PARA JORNALISTA VER? Ayman Nimr diz que os supermercados foram abastecidos ontem. "Deve ter sido para os jornalistas verem", afirmou. Na guerra, porém, faltava tudo. Água, energia elétrica, pão e carne. Alguns sentiram falta até de um teto, pois foram aconselhados por Israel a sair de suas casas para que os edifícios pudessem ser bombardeados sem deixar vítimas. O desempregado Samir, de 32 anos, é um deles. Mora em conjunto habitacional no norte de Gaza, perto de Israel. São 15 edifícios, todos danificados pelos disparos israelenses. Ao lado do amigo Nasser, de 43 anos, que vive do salário da Autoridade Palestina, ele descreve entusiasmado para jornalistas como os mísseis destruíram o tanque de água que abastecia os prédio. Seis mísseis em dois bombardeios distintos, diz. Com a trégua, as famílias voltaram a suas casas. Como em grande parte das residências de Gaza, as moradias têm muitas janelas, mas agora sem vidros, estilhaçados pelo barulho dos aviões e dos bombardeios. Após os ataques, são apenas buracos nas paredes dividindo espaço com rombos ainda maiores, provocados por morteiros. Nas ruas empoeiradas de Gaza, dá para ver os efeitos dos dois anos de bloqueio. Sem locomoção, muitos apelaram para charretes. Alguns ainda dirigem carros velhos, como se fosse na Cuba de Fidel Castro. Parte dos veículos é dos anos 60 e 70. Taxistas mostram com orgulho suas limusines decadentes, na esperança de atrair os jornalistas ocidentais com um símbolo de riqueza que ainda persiste nesse atrasado território. As peças de reposição, assim como cimento, não podem entrar em Gaza desde que o Hamas assumiu o poder no território, ao derrubar o Fatah em 2007. O medo é que sejam usados para a construção de armamento e túneis em Rafah, na divisa com o Egito. A Escola Americana era um dos poucos símbolos do Ocidente em Gaza, frequentada pelos filhos e filhas da elite palestina. Mas não existe mais. Foi destruída em um ataque aéreo, assim como outras 37 no território. "Não querem que os palestinos tenham educação", diz em inglês fluente Dana, de 15 anos. No centro da cidade, bandeiras palestinas e do Hamas adornam as ruas como se fosse festa junina. Cartazes de "mártires" estão em quase todos os espaços disponíveis, a não ser pelas poucas placas de publicidade de cigarro. Uma loja, com a foto do xeque Ahmed Yassin - fundador do Hamas morto por Israel em 2004 - na entrada, anuncia "suvenires" do grupo. Diferentemente da Cisjordânia, onde ainda se veem anúncios em inglês, em Gaza tudo é escrito em árabe. Ali perto fica a Universidade al-Azhar, alvo de disparos, mas ainda de pé com seu objetivo de dar educação superior aos palestinos de Gaza. Há poucos prédios comerciais que não sejam lojas de frutas ou minimercados. Há um Banco da Jordânia. E um prédio da Palestinian Airlines, com as portas fechadas e a marquise despedaçada. A área nobre da Cidade de Gaza é a orla, assim como no Rio de Janeiro, Beirute ou Tel-Aviv. A diferença são os prédios de arquitetura inexistente. A praia é de areia amarelada. O mar é verde. Não tem barcos. Há cadeiras de salva-vidas e alguns quiosques fechados. E poucas pessoas caminham diante do Mediterrâneo em uma tarde de inverno. Zeitoun - e muitas de suas oliveiras - foi arrasada por Israel na ofensiva. Dezenas de pessoas de uma mesma família morreram nesse subúrbio de Gaza. Israel impediu que muitos feridos fossem resgatados. Hoje, escombros do que parece ter sido um conjunto de casas se misturam aos restos das plantações. Se não fosse pela descrição dos moradores, seria impossível definir o que existia no local. ?SHAHID? A mulher de Muhammad vem em minha direção. É difícil entender o seu nome. Algo como "Abir". Ela faz questão de afirmar que o marido agora é um shahid ("mártir"). "Bomb, bomb, yahud", diz ela, misturando árabe e inglês para informar que virou viúva nos bombardeios "dos judeus", que é a forma como os palestinos se referem aos israelenses. A casa dela ficou de pé, apesar de marcas de disparos. O quintal é cheio de moscas, que sobrevoam ora galinhas e um jumento morto, ora crianças. "Abir" está de preto e deixa se fotografar ao lado das amigas. Diz que sua filha, de 3 anos, também morreu. Ao lado, um homem barrigudo com a cabeça enfaixada caminha e é cumprimentado por todos os outros palestinos. Tornou-se herói. Ele ficou ferido combatendo Israel. Nos ataques israelenses, as mesquitas não foram poupadas. Segundo Israel, os militantes as usavam para atacar - declaração, em alguns casos, confirmada por fontes independentes. Uma delas está com os minaretes danificados. Outra foi destruída. Os palestinos juntaram-se ao redor da mesquita em ruínas onde todas as sextas-feiras, como ontem, dia sagrado para os muçulmanos, rezam em direção a Meca. Israel argumenta que a maior parte dos bombardeios tinha como alvo lugares de onde militantes do Hamas disparavam foguetes. Há pouca dúvida de que realmente os guerrilheiros do grupo usaram instalações civis para atacar os israelenses. Mas fica difícil entender como eles dispararam de um cemitério, que hoje, além das covas, tem uma cratera provocada por um bombardeio.

Comentários

Os comentários são exclusivos para cadastrados.