Conheça a versão internacional de “adultos na sala” do presidente Donald Trump: Shinzo Abe. No domingo, o primeiro-ministro japonês e seu Partido Liberal Democrata, no poder, registraram uma grande vitória eleitoral em eleições antecipadas convocadas por ele. As perspectivas foram reforçadas quando a popular governadora de Tóquio, Yuriko Koike, anunciou anteriormente que havia decidido não disputar com Abe o cargo de primeiro-ministro.
A manutenção da grande maioria de dois terços na Câmara Baixa do Parlamento do Japão dá a Abe a oportunidade de reescrever a Constituição, que, imposta ao país em 1947 pelos Estados Unidos, fez o Japão comprometer-se em renunciar totalmente à guerra. Agora, Abe quer mudar a Carta para permitir que as forças de autodefesa do Japão combatam ao lado de seus aliados, como os Estados Unidos. Em um sinal que revela o quanto as coisas mudaram na Ásia, durante décadas o governo dos Estados Unidos esteve indeciso quanto ao fato de o Japão revisar sua Constituição. Não mais.
Desde a eleição de Trump, Abe cortejou o presidente americano, um acentuado contraste com os líderes europeus que marcaram pontos políticos ao se distanciarem do governo dos EUA. Abe assumiu um grande risco político quando viajou para a Trump Tower antes da posse, para se reunir com o presidente eleito. Lembremo-nos do momento em que Abe e o presidente que saía, Barack Obama, concluíram visitas paralelas – a Hiroshima, em maio de 2016, e a Pearl Harbor, em dezembro de 2016 –, ambas repletas de simbolismo político.
Após a visita à Trump Tower, Abe retornou aos Estados Unidos em fevereiro para uma cúpula com Trump em Mar-a-Lago, durante a qual o premiê e o resto de sua equipe, diante do caos geral do lado americano, providenciaram equipes para as reuniões, estabeleceram a agenda e organizaram uma coletiva de imprensa.
No meio da cúpula, a Coréia do Norte lançou um míssil e Trump e Abe foram fotografados discutindo o caso sob a luz das velas na sala de jantar lotada no clube de Trump. Desde então, os dois falaram por telefone diversas vezes.
Duas coisas parecem estar conduzindo o relacionamento de Abe com o presidente americano. A primeira é que o Japão, confrontado com uma China em expansão e uma Coreia do Norte beligerante – a agência de notícias estatal recentemente chamou Abe de “uma galinha sem cabeça” –, ainda precisa dos Estados Unidos como aliado e parceiro comercial. Durante a campanha eleitoral, o Japão ficou assustado com o ataque de Trump contra as alianças dos EUA na Ásia e sua sugestão de que talvez o Japão e a Coreia do Sul deveriam tornar-se potências nucleares e defender-se. Em vez de criticar ou dar as costas ao presidente, Abe o abraçou mais forte. Sua diplomacia valeu a pena quando os dois lados emitiram um comunicado conjunto no qual o governo Trump novamente se comprometeu a defender as Ilhas Senkaku, que também são reivindicadas pela China.
Abe também não desistiu da Parceria Transpacífica (TPP), acordo comercial envolvendo 12 nações na região da Ásia-Pacífico que foi negociado pelo governo Obama, mas que Trump rejeitou assim que assumiu o cargo. “Abe passou muito tempo nesse carrinho de golfe em Mar-a-Lago dizendo a Trump porque o TPP era importante”, disse Sheila Smith, especialista em política japonesa no Council on Foreign Relations. O governo de Abe continuou a discutir a possibilidade de promulgar um TPP sem os Estados Unidos, na esperança de que os Washington eventualmente decidissem aderir ao pacto.
Um segundo motivo para a resoluta diplomacia de Abe é que, como líder, ele parece ter amadurecido. O avô de Abe, Nobusuke Kishi, foi preso por três anos como suspeito de crimes de guerra após a 2.ª Guerra, e Abe escreveu que ele entrou na política e adotou as causas conservadoras em parte para limpar o nome de sua família. As tentativas de Abe de lutar com o passado dominaram seu primeiro mandato como primeiro ministro do Japão, em 2006. Mas ele não se saiu bem e, citando razões de saúde, renunciou depois de um ano no cargo.
Abe voltou ao poder em dezembro de 2012, disciplinado por seu fracasso e menos focado em tentar expurgar a culpa japonesa pela 2.ª Guerra. “Vejo alguém que aprendeu com duras experiências e contratempos pessoais”, disse Smith.
Abe também descobriu que o Japão não deveria colocar todas as fichas nos EUA. Trump está longe de ser o único líder já submetido à versão de Abe de uma “ofensiva de charme”. Ele realizou uma cúpula com o russo Vladimir Putin. Tem boas relações com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi. Tentou consertar a relação com o chinês Xi Jinping, apesar da relutância da China em participar.
Desde 2012, Abe viajou para mais de 50 países, vendendo energia nuclear no Oriente Médio, transportando trilhos de alta velocidade para a Índia e oferecendo investimento japonês ao Sudeste Asiático. Durante décadas, sucessivos presidentes dos EUA insistiram com seus pares no Japão para emergir da sombra dos americanos e assumir mais responsabilidade por sua defesa, pelas relações exteriores e por outras questões importantes em todo o mundo. Agora, estimulado pela imprevisibilidade do governo Trump, Abe parece estar acatando o conselho americano. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO
*É JORNALISTA
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