Os protestos que sacodem Egito, Tunísia e os países vizinhos do Oriente Médio soam como um alerta para as demais ditaduras: toda a repressão tem prazo de validade. Mas a mensagem parece não ter chegado ao nosso hemisfério. Certamente não a Caracas, onde o presidente venezuelano, Hugo Chávez, oficializou esta semana o que todos já sabiam, que pretende sim concorrer a um novo mandato presidencial nas eleições de 2012. Ou seja, enquanto manifestantes tomam as ruas para encurralar ditadores tarimbados como Zine al-Abidine Ben Ali, da Tunísia, Hosni Mubarak, do Egito, e o rei Abdullah II, da Jordânia, e ainda passam susto nos outros sócios da franquia autoritária, de Pyongyang a Harare, Chávez tranquilamente se organiza para conseguir ficar no poder até 2019.A despreocupação do comandante chama a atenção, pois ingredientes para inquietação na República Bolivariana não faltam. A Venezuela hoje sofre de escassez de mercadorias, surto de crime violento, inflação de 27% ao ano. A receita é mortal para qualquer governante, mais ainda para um líder no seu 13.º ano de mandato - tempo demais para reciclar as velhas desculpas da herança maldita em que Chávez sempre se apoiou. Sendo assim, como o coronel se sustenta? O fato é: há tiranos e tiranos. E embora as sutilezas que dividem a classe talvez escapem dos cidadãos que se encontram no lado errado do porrete oficial, são justamente essas diferenças que podem derrubar ou blindar um déspota em apuros. Uma delas, claro, é que Chávez goza do apoio das Forças Armadas. E se não confia plenamente nelas, conta ainda com sua guarda pretoriana: dezenas de comissários cubanos que reúnem meio século de experiência em controle das multidões. Mas seu trunfo principal é outro. É a tecnologia do regime bolivariano, com seu jeito especial de mandar e governar. Distinta de países administrados por teocracias, clãs e dinastias políticas ou familiares, a Venezuela configura-se em uma autêntica semidemocracia, com ares de uma sociedade aberta e dotada de importantes para-choques políticos. O governo Chávez admite liberdades civis e políticas e até se gaba delas, mesmo enquanto as nega para seus inimigos. Tolera opiniões não oficiais até que elas incomodem demais. Manipula as eleições, retalhando o mapa distrital para aumentar o peso dos redutos governistas - como fez no pleito de setembro passado, quando manteve o controle do Congresso mesmo perdendo a maioria do voto popular. Mas não aterroriza os eleitores nem abusa na fraude das urnas. Delega aos tribunais certa liberdade, desde que estejam aparelhados de partidários governistas e delatores.O resultado prático da semidemocracia pode ser igual ao da ditadura franca: um regime impermeável a mudanças que diz, desdiz, prende e liberta ao sabor do mandatário. A diferença é o estilo de tocar a política que cria válvulas de escape e ajuda o governo a cercear os inimigos ao mesmo tempo em que lhes tira o alvo fácil da tirania escancarada. Quem desembarca na Venezuela esperando encontrar um Estado policial, censura sufocante e dissidentes perseguidos ou presos em campos de concentração acaba perplexo. Enfim, como o país pode ser tachado de uma ditadura se ocorrem por lá uma tamanha balbúrdia, a chacota política e o alegre caos nas ruas?O segredo da semidemocracia é permitir a liberdade em dose suficiente para azeitar as reações sociais e a convivência política, mas sem ameaçar as regras do jogo estabelecido pelo presidente. Acrescenta-se aí uma boa dose de assistencialismo regado a petrodólares - que estabelece o litro de gasolina a R$ 0,04 - e um toque de teatro populista - como desapropriar mansões dos ricos em nome da revolução bolivariana. Assim, o mínimo da indulgência popular estará mantido e os inimigos se desequilibram. Por essas e outras, apesar da economia em frangalhos e o surto de violência, Chávez mantém uma taxa de aprovação de 50%, segundo as últimas pesquisas. A cultura venezuelana também colabora em sustentar o acidentado governo Chávez. Com um saudável senso de ridículo, os venezuelanos são um povo descontraído e admitem perder a disputa política, mas não a piada. O humorístico mais comentado do país é El chiguirre bipolar, que ironiza os arroubos do ciclotímico Chávez. Avessos a fundamentalismos e martírios, os caraquenhos protestam, mas ninguém se imola por uma boa causa. "Na maioria, somos descendentes do povo aruaque e não do Caribe", diz Gustavo Coronel, consultor de energia e ex-diretor da petroleira PDVSA. "Os aruaques comiam principalmente milho e a banana-da-terra. Os carib comiam os aruaques."Por ora, Chávez não está no cardápio venezuelano. Mas se seus correntes do Oriente trazem alguma certeza, é que o paladar dos povos também muda.