Chile deixa de ser exemplo na luta contra o coronavírus

Governo acreditava ter contido a pandemia, mas esqueceu dos bairros superpovoados, onde a disseminação da covid-19 disparou

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Por John Bartlett

SANTIAGO, CHILE - Não faz muito tempo que o presidente chileno Sebastián Piñera se gabava de que o país estava pronto para o novo coronavírus. "Muito melhor preparado que a Itália", foi como descreveu o país em março.

Vista aérea de valas para vítimas do coronavírus em Santiago; aglomerados urbanos sofrem com a pandemia Foto: MARTIN BERNETTI / AFP

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E depois de decretar lockdown, fortalecer hospitais e realizar testes em massa, o país parecia estar se saindo bem contra a pandemia. Com um sistema de saúde comparativamente avançado, mantinha o número de casos e mortes mais baixos do que os vizinhos Brasil, Equador e Peru. Em abril, as autoridades anunciavam planos de distribuir um "passaporte de imunidade" inédito no mundo, permitindo aos chilenos que haviam se recuperado da covid-19 voltar ao trabalho.

Agora, parece que eles estavam confiantes demais

Após semanas de números crescentes de infecções, o Chile registrou mais de 246 mil casos de covid-19, tornando-se o sétimo país no mundo em número de casos, e 4,5 mil mortes. Seus 1.318 casos a cada 100 mil pessoas o faz liderar a taxa de infecção na América Latina.

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Como em outros países, o coronavírus foi propagado dos ricos para os pobres, aumentando sua devastação ao infectar pessoas mais vulneráveis.

Os primeiros casos estavam concentrados em uma população mais jovem nas áreas mais ricas de Santiago, mantendo as hospitalizações e mortes relativamente baixas e levando as autoridades a acreditar que o surto estava contido. Mas o movimento dos trabalhadores pela capital logo levou a doença a bairros mais pobres e superlotados. A abordagem de impor e suspender bloqueios totais, "lockdowns dinâmicos", por área não teve êxito.

"O governo perdeu uma oportunidade inicial quando não fez o suficiente para rastrear o contágio ou isolar os viajantes que retornavam aos subúrbios mais ricos - e depois relaxou os bloqueios totais muito rapidamente", disse Ximena Aguilera, epidemiologista do comitê consultivo contra o novo coronavírus do Chile.

"A aposta era que eles seriam capazes de conter a propagação do vírus mais cedo", disse Ximena. "Mas a estratégia se concentrou desproporcionalmente nos cuidados hospitalares - quando o aspecto social é igualmente importante".

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A pandemia chegou ao Chile após meses de manifestações contra o aumento da desigualdade. O movimento criticava o que os manifestantes disseram ser a distribuição desigual de ganhos do rápido crescimento do país nas últimas décadas. Essas diferenças foram agora expostas pelo novo coronavírus.

"Embora goste de pensar o contrário, o código de DNA do Chile é muito latino-americano e suas cidades são altamente segregadas", disse Dante Contreras, economista da Universidade do Chile. "Parte da população vive no primeiro mundo e o resto no terceiro mundo. No entanto, todos vivemos a poucos quilômetros um do outro."

Chilenos em fila de banco em Santiago Foto: EFE/Alberto Vald?

"Tanto o movimento social quanto a pandemia rasgaram um véu, revelando um país muito diferente daquele em que a elite do Chile pensava que vivia".

Diferenças sociais

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A taxa de mortalidade por covid-19 nos hospitais públicos de Santiago tem sido o dobro do das clínicas particulares nas ricas regiões da capital. Pesquisadores de um estudo recente do Lancet mostraram que Santiago é uma das capitais mais desiguais na expectativa de vida na América Latina.

No vale inclinado de Santiago, em Lo Hermida, um bairro densamente povoado e famoso por sua solidariedade e auto-organização, as políticas de isolamento determinadas para as classes média e alta do Chile pareciam inaplicáveis. Os conselhos inicialmente sugeriam que aqueles que contraíram o vírus fossem isolados em compartimentos separados e bem ventilados, e evitassem compartilhar banheiros com outras pessoas.

Em casas onde várias gerações vivem juntas em espaços confinados, isso não é possível. "Onde essas pessoas deveriam se isolar?" perguntou María Araneda, líder comunitária em Lo Hermida. "Se um de nós pegar o vírus, todos pegarão, porque não podemos simplesmente mudar para outro canto."

Para aumentar o risco, disse ela, muitos vizinhos trabalham no setor informal, sem economias ou pensões para depender. "As pessoas ganham a vida no dia a dia, vendendo o que têm nos mercados ou trabalhando onde podem", disse María. "Ficar em casa simplesmente não é uma opção, porque se as pessoas não saem para trabalhar, não comem."

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Escolas e universidades fecharam seus campus e adotaram aulas online, mas muitos estudantes não conseguem acessar a Internet de alta velocidade.

Jaime Mañalich, que renunciou este mês como ministro da Saúde do Chile em meio a uma enxurrada de críticas, reconheceu que não havia considerado a extensão da pobreza e do superpovoamento em partes de Santiago.

Em maio, quando o governo deixou de adotar as restrições dinâmicas e passou a decretar lockdown em toda a cidade, protestos ávidos surgiram no subúrbio do sul de El Bosque. Os moradores já estavam em quarentena há mais de um mês e a renda começava a desaparecer.

O governo apressou o lançamento de um programa de ajuda alimentar em todo o país, mas seu foco limitado - e entregas de comida ostensivas acompanhadas por equipes de filmagem - atraiu críticas.

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María descreveu as caixas de comida como um "curativo". Ela continua realizando um programa de cozinha comunitária, preparando refeições para o povo de Lo Hermida com alimentos doados, dois ou três dias por semana.

Vários pacotes de estímulo foram anunciados para pessoas em dificuldades. Mas eles atingem apenas parte do problema, segundo a epidemiologista Ximena. "As pessoas nos bairros mais pobres não estão piores do ponto de vista econômico apenas, mas vários fatores as tornam mais vulneráveis ao vírus", disse ela. "A superpovoação complica a situação, enquanto fatores alimentares e de estilo de vida contribuem para o aumento da incidência de doenças como hipertensão e diabetes."

Reação do governo

O Chile manteve níveis comparativamente altos de testes do covid-19. Mas a impopularidade de Piñera após os protestos em outubro passado e uma estratégia de comunicação caótica durante a pandemia minaram a resposta do governo.

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Em abril, as autoridades anunciavam o retorno à normalidade e alertavam que o pior surto do país ainda estava por vir. Uma autoridade de saúde experiente disse que as pessoas poderiam encontrar amigos para tomar café, desde que mantivessem distância, e em 30 de abril, quando o país confirmou 16 mil casos, um shopping em Santiago se tornou o primeiro a reabrir.

O governo estabeleceu uma data para o lançamento dos passaportes de imunidade, mas rapidamente voltou atrás depois que a Organização Mundial da Saúde (OMS) aconselhou a não fazê-lo, dizendo que não havia ligação comprovada entre recuperação e imunidade.

Quando os casos na capital dispararam, os pedidos do governo para um retorno gradual à normalidade deram lugar a referências à partida de futebol entre Chile e Itália em 1962 conhecida como Batalha de Santiago. O shopping de Santiago fechou novamente.

No sábado 20, Piñera aprovou uma lei para aumentar a pena por violação de restrições de lockdown em até cinco anos de prisão.

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Com o inverno começando a dar as caras, os chilenos agora enfrentam meses de quarentena. Enquanto o Chile ultrapassava a Itália em número de casos, os novos dados desta semana ofereceram um vislumbre de esperança de que sua curva esteja começando a se achatar. As autoridades agora estão pedindo aos chilenos que não baixem a guarda.

Um referendo constitucional conquistado pelos manifestantes no ano passado foi adiado para outubro. Espera-se que isso traga as pessoas de volta às ruas para protestar contra as condições agora expostas. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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