Nos bastidores das elegantes e sofisticadas casas de leilões de Genebra, muitos especialistas preocupam-se com uma nova tendência no mundo das artes: a ofensiva de autoridades chinesas para bloquear, ameaçar e até mesmo denunciar na Justiça o leilão de peças consideradas patrimônio da China que há décadas chegaram à Europa, por meios ilegais ou roubadas por Exércitos ocidentais.
Pequim estima que apenas na Segunda Guerra do Ópio, 1,5 milhão de peças de arte, relíquias e bens culturais foram roubados. Oficialmente, o banco de dados da Unesco aponta que 1,67 milhão de peças chinesas estão em cerca de 200 museus pelo mundo. Mas autoridades chinesas estimam que o número seja de 10 milhões. Um fundo milionário foi criado para recomprar as obras e o retorno do patrimônio se transformou em política de Estado.
Enquanto era considerada um país em desenvolvimento pelos europeus, durante o século 19 e 20, a China limitou-se a pedir a governos e museus europeus que devolvessem suas obras, sem nenhum resultado. Agora uma potência, a China quer seu patrimônio cultural de volta.
No início do mês, os chineses entraram com uma ação judicial contra a casa de leilão Artcurial para tentar impedir a venda de peças de arte que teriam sido roubadas da Cidade Proibida, em Pequim, em 1860, por tropas franceses e britânicas que invadiram o local.
Mesmo enfrentando a pressão chinesa, a casa de leilão foi adiante com o projeto que previa arrecadar 200 mil euros com a venda de um jarro do período Qianlong. Segundo os europeus, a peça estava com uma família francesa desde o século 19 e foi vendida por 1,1 milhão de euros.
Uma entidade foi criada na Europa para sair em busca da arte chinesa roubada, com escritórios em Barcelona, Paris, Lisboa, Londres e Madri. A Associação para a Proteção da Arte Chinesa na Europa (Apace) entrou com uma ação criminal por roubo no caso do jarro de 1,1 milhão de euros. "Essa peça é parte da herança cultural chinesa", indicou a entidade. Mas a disputa pelo jarro tem uma conotação política que vai bem além da questão cultural. Em declarações ao Estado, a Apace insiste que devolver o jarro seria um ato para o benefício de "todo o povo chinês".
A Segunda Guerra do Ópio, de 1860, foi uma grande humilhação chinesa diante do Ocidente. A estimativa da Apace é que 1,5 milhão de relíquias tenham sido roubadas pelos ocidentais naquele ano. Hoje, eles alegam que muitas estão em catálogos e são consideradas peças "legalmente adquiridas".
Documentos do arquivo diplomático britânico revelam que foi James Bruce, Lorde de Elgin, quem ordenou que a Cidade Proibida fosse destruída. O ato seria uma resposta à morte de 12 diplomatas europeus e um jornalista britânico. No último instante, a destruição total foi evitada em razão do temor dos europeus de que uma humilhação das autoridades chinesas desencadeasse a queda da dinastia e criasse um perigoso vácuo de poder.
Na ofensiva, milhares de soldados aproveitaram a ocasião para levar um número significativo de peças. Para recuperar seu patrimônio, Pequim tem usado de vários instrumentos e a ofensiva não se limita à Europa.
A China fechou um acordo com a Casa Branca que proíbe a importação de antiguidades chinesas desde o paleolítico. Uma das metas é a de frear a transferência de arte roubada que está na Europa para museus e colecionadores nos EUA. Acordos similares já foram assinados com Peru, Itália, Índia e outros países.
Outro método tem sido o da pura ameaça - também chamado de "lobby" pelos chineses. Em novembro, a casa de leilão de Londres Bonhams anunciou que estava abandonando a venda de peças que haviam sido retiradas da Cidade Proibida.
Foi a primeira vez que uma casa de leilão da Europa preferiu não irritar os chineses. Na explicação sobre a origem das peças, a casa admitia em seu site que elas haviam sido "retiradas" do Palácio de Verão por um soldado britânico, em 1860, ano da invasão.
Oficialmente, a opção por não ir adiante com o leilão foi para "evitar a indignação do povo chinês". Na realidade, leiloeiros em Genebra confessaram ao Estado que a medida foi tomada para não criar a indignação das autoridades chinesas. A Sotheby's , outra casa de leilão, é usada como exemplo. Desde 2000 ela ignora alertas de Pequim e teve sua atuação na China cada vez mais restrita.
Pequim já deu demonstrações do que pode fazer. Em 2009, duas cabeças de animais de bronze foram colocadas à venda pelo francês Yves Saint-Laurent. As peças foram vendidas por 31 milhões de euros. Mas o comprador era o chinês Cai Mingchao, ex-conselheiro do Fundo de Tesouros Nacionais da China, uma entidade criada para recuperar arte chinesa. Cai simplesmente deu um calote na casa de leilão e disse que esse era seu "dever patriótico". A Christie's cedeu e não o processou.
A opção não teve nada a ver com generosidade ou compreensão pela importância do que representa patrimônios nacionais. Semanas antes, o governo chinês havia avisado que, se fosse adiante com o leilão, os negócios da Christie's na China sofreriam "sérias consequências". De olho no que poderá ser em breve o maior mercado de artes do mundo, a casa abandonou o caso.
Se há 40 anos era ilegal possuir uma obra de arte na China, hoje o país é o segundo maior mercado de artes do mundo. O mercado americano ainda lidera, mas a China superou, pela primeira vez, Londres e Paris. Com um número de milionários em expansão, o mercado de arte se transformou em um novo foco, que está deslocando o eixo do setor do Atlântico para o Pacífico. Em três anos, o volume de arte negociada na China, Macau, Taiwan e Hong Kong dobrou.
Enquanto museus europeus e casas de leilão se prepararam para enfrentar ações judiciais, analistas preferem apontar uma ironia na estratégia chinesa. Segundo os europeus, um número grande de peças foi de fato roubado. Mas outra parcela só existe porque foram retiradas da China diante do risco de serem destruídas pela Revolução Cultural promovida pelo Partido Comunista, que hoje gasta fortunas para recuperar a herança cultural do país.