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Como a mídia russa espalhou as falsas alegações sobre nazismo na Ucrânia durante a guerra

Referências ao nazismo na mídia russa permaneceram relativamente estáveis por oito anos e depois atingiram níveis sem precedentes no dia da invasão à Ucrânia

Por Charlie Smart
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - Nos meses desde que o presidente russo Vladimir Putin chamou a invasão da Ucrânia de missão de “desnazificação”, a mentira de que o governo e a cultura da Ucrânia estão cheios de perigosos “nazistas” tornou-se um tema central da propaganda do Kremlin sobre a guerra.

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Um conjunto de dados de quase oito milhões de artigos sobre a Ucrânia, coletados em mais de 8 mil sites russos desde 2014, mostra que as referências ao nazismo permaneceram relativamente estáveis por oito anos e depois atingiram níveis sem precedentes em 24 de fevereiro, dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia. Eles permaneceram altos desde então.

Os dados, fornecidos pela Semantic Visions, uma empresa de análise de defesa, incluem os principais meios de comunicação estatais russos, além de milhares de sites e blogs russos menores. Isso dá uma visão das tentativas da Rússia de justificar seu ataque à Ucrânia e manter o apoio interno à guerra em andamento, retratando falsamente a Ucrânia como sendo ocupada por militantes de extrema direita.

As notícias alegaram falsamente que os “nazistas ucranianos” estão usando não-combatentes como escudos humanos, matando civis ucranianos e planejando um genocídio de russos.

A estratégia, provavelmente, pretendia justificar o que o Kremlin esperava que fosse uma rápida derrubada do governo ucraniano, disse Larissa Doroshenko, pesquisadora da Northeastern University que estuda desinformação. “Isso ajudaria a explicar por que eles estão estabelecendo este novo país em certo sentido”, disse Larissa. “Como o governo anterior era nazista, eles tiveram que ser substituídos.”

Vários especialistas na região disseram que a alegação de que a Ucrânia foi comprometida por nazistas é falsa. O presidente Volodmir Zelenski, que recebeu 73% dos votos quando foi eleito em 2019, é judeu, e todos os partidos de extrema direita combinados receberam apenas cerca de 2% dos votos na eleição parlamentar de 2019 - menos do que os 5% de votos necessários para representação.

O presidente russo, Vladimir Putin, em reunião no Kremlin Foto: Mikhail Klimentyev/Sputnik, Kremlin Pool Photo via AP

“Toleramos na maioria das democracias ocidentais taxas significativamente mais altas de ativismo de extrema direita”, disse Monika Richter, chefe de pesquisa e análise da Semantic Visions e membro do American Foreign Policy Council.

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A compreensão comum russa sobre o nazismo depende da noção da Alemanha nazista como a antítese da União Soviética, e não da perseguição aos judeus, disse especificamente Jeffrey Veidlinger, professor de história e estudos judaicos da Universidade de Michigan. “É por isso que eles podem chamar um Estado que tem um presidente judeu de Estado nazista e isso não parece tão discordante para eles”, disse ele.

Apesar da falta de evidências de que a Ucrânia é dominada por nazistas, a ideia pegou entre muitos russos. As falsas alegações sobre a Ucrânia podem ter começado na mídia estatal, mas sites de notícias menores ampliaram as mensagens.

Dados de mídia social fornecidos pelo Zignal Labs mostram um aumento nas referências ao nazismo em tuítes em russo que correspondem ao aumento na mídia de notícias russa. “Você vê isso em grupos de bate-papo russos e em comentários que os russos estão fazendo em artigos de jornal”, disse Veidlinger. “Acho que muitos russos realmente acreditam que esta é uma guerra contra o nazismo.”

Ele observou que o sucesso desta campanha de propaganda tem raízes profundas na história russa. “A guerra contra o nazismo é realmente o momento decisivo do século 20 para a Rússia”, disse Veidlinger. “O que eles estão fazendo agora é, de certa forma, uma continuação deste grande momento de unidade nacional da 2ª. Guerra. Putin está tentando atiçar a população a favor da guerra”.

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Putin fez alusão a essa história em um discurso em 9 de maio, durante o feriado russo que comemora a vitória sobre a Alemanha nazista, o Dia da Vitória. “Vocês estão lutando por nossa pátria para que ninguém esqueça as lições da 2ª. Guerra”, disse ele a um desfile de milhares de soldados russos. “Para que não haja lugar no mundo para torturadores, esquadrões da morte e nazistas.”

Uma característica fundamental da propaganda russa é sua repetitividade, disse Monika. “Você apenas vê uma regurgitação constante e reembalagem das mesmas coisas repetidamente.” Nesse caso, isso significa repetir alegações infundadas sobre o nazismo. Desde a invasão, 10 a 20 por cento dos artigos sobre a Ucrânia mencionaram o nazismo, de acordo com os dados da Semantic Visions.

Especialistas dizem que ligar a Ucrânia ao nazismo pode evitar dissonância cognitiva entre os russos quando as notícias sobre a guerra em lugares como Bucha vazam. “Isso os ajuda a justificar essas atrocidades”, disse Doroshenko. “Ajuda a criar essa dicotomia de preto e branco - nazistas são ruins, nós somos bons, então temos o direito moral.”

A tática parece funcionar. O acesso dos russos a fontes de notícias não vinculadas ao Kremlin foi restringido desde que o governo silenciou a maioria dos meios de comunicação independentes após a invasão. Durante a guerra, cidadãos russos ecoaram afirmações sobre o nazismo em entrevistas e, em uma pesquisa publicada em maio pelo Levada Center, um instituto independente de pesquisas russas, 74% expressaram apoio à guerra.

Parte do que torna as acusações de nazismo tão úteis para os propagandistas russos é que o passado da Ucrânia está entrelaçado com a Alemanha nazista.

“Há uma história de colaboração ucraniana com os nazistas, e Putin está tentando se apoiar nessa história”, disse Veidlinger. “Durante a 2ª. Guerra havia partidos na Ucrânia que procuravam colaborar com os alemães, particularmente contra os soviéticos.”

Especialistas disseram que essa história torna mais fácil para a mídia russa estabelecer conexões entre nazistas reais e grupos modernos de extrema direita para dar a impressão de que os grupos contemporâneos são maiores e mais influentes do que realmente são.

O Batalhão de Azov, um regimento do Exército ucraniano com raízes em grupos políticos ultranacionalistas, é usado pela mídia russa desde 2014 como exemplo de apoio da extrema-direita na Ucrânia. Analistas disseram que o retrato da mídia russa sobre o grupo exagera até que ponto seus membros têm opiniões neonazistas.

Combatente ferido do Batalhão de Azov é fotografado na Usina Siderúrgica de Azovstal, em Mariupol Foto: Dmytro 'Orest' Kozatskyi/Azov Special Forces Regiment of the Ukrainian National Guard Press Office via AP - 10/05/2022

A televisão russa apresentou regularmente segmentos sobre o batalhão em abril, quando membros do grupo defenderam uma usina siderúrgica na cidade sitiada de Mariupol.

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“Para a Rússia, foi uma oportunidade perfeita”, disse Larissa. “Era como, ‘Estamos os difamando por tanto tempo e eles ainda estão lá, eles ainda estão lutando, então podemos justificar nossas táticas de destruir Mariupol porque precisamos destruir esses nazistas.’”

A falsa alegação da Rússia de que sua invasão da Ucrânia é uma tentativa de “desnazificar” o país foi criticada pela Liga Antidifamação, pelo Museu Memorial do Holocausto dos EUA e dezenas de estudiosos do nazismo, entre outros.

“O atual Estado ucraniano não é um Estado nazista de forma alguma”, disse Veidlinger. “Eu diria que o que Putin realmente tem medo é da disseminação da democracia e do pluralismo da Ucrânia para a Rússia. Mas ele sabe que a acusação de nazismo vai unir sua população”.

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