Como a Ucrânia se tornou a primeira guerra verdadeiramente mundial; leia artigo de Thomas Friedman

Na ‘Guerra Mundial Conectada’, virtualmente qualquer um no planeta pode observar combates em detalhe, participar de alguma maneira ou ser afetado economicamente — não importa onde viva

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Por Thomas L. Friedman
9 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - Quase seis semanas após o início da guerra entre Rússia e Ucrânia, começo a me perguntar se este conflito não é nossa primeira guerra mundial verdadeira — muito mais do que a 1.ª Guerra ou a 2.ª Guerra jamais foram. Nesta guerra, que considero uma “Guerra Mundial Conectada”, virtualmente qualquer um no planeta pode observar combates em detalhe, participar de alguma maneira ou ser afetado economicamente — não importa onde viva.

Ainda que a batalha terrestre que desencadeou a Guerra Mundial Conectada seja ostensivamente sobre quem deveria controlar a Ucrânia, não se deixe enganar. Este conflito se transformou rapidamente na “grande batalha” entre os dois sistemas políticos mais dominantes do mundo atual: o livre mercado e “a democracia do Estado de Direito versus a cleptocracia autoritária”, ressaltou-me o especialista sueco em economia russa Anders Aslund.

Apesar desta guerra estar longe de acabar, e Vladimir Putin ainda ser capaz de encontrar uma maneira de vencer e se fortalecer, se ele não conseguir, o conflito poderia virar um divisor de águas na luta entre sistemas democráticos e não democráticos. Vale lembrar que a 2.ª Guerra pôs fim ao fascismo e que a Guerra Fria pôs fim ao comunismo ortodoxo — até na China, eventualmente. Então, o que vier a acontecer nas ruas de Kiev, em Mariupol e na região do Donbas poderia influenciar sistemas políticos muito além da Ucrânia e muito adiante no futuro.

Certamente outros líderes autocráticos que, como o da China, observam a Rússia com atenção, veem a economia russa ser enfraquecida pelas sanções do Ocidente, milhares de seus jovens qualificados em tecnologia fugindo de um governo que lhes nega acesso à internet e notícias críveis e cujo Exército inepto parece incapaz de reunir, compartilhar e direcionar informações exatas para a cúpula do poder. Esses líderes têm de estar se perguntando: “Caramba, sou assim tão vulnerável? Sou presidente de um castelo de cartas como esse?”.

Na 1.ª Guerra e na 2.ª Guerra ninguém tinha smartphones nem acesso a redes sociais através dos quais poderia observar e participar da guerra de maneiras não cinéticas. Na verdade, grande parte da população do mundo ainda era colonizada e não possuía liberdade plena para expressar pontos de vista independentes, mesmo se tivessem a tecnologia. Muitos dos que viviam longe das zonas de guerra também eram camponeses de subsistência extremamente pobres, que não foram tão profundamente afetados por aquelas duas primeiras guerras mundiais. As gigantescas classes médias e baixas urbanizadas e conectadas globalmente do mundo atual não existiam.

"Sem dinheiro para assassinos": protesto na Alemanha pede boicote ao gás e petróleo russos  Foto: Michael Probst/AP

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A guerra na palma da sua mão

Hoje, qualquer pessoa com um smartphone nas mãos é capaz de ver o que está acontecendo na Ucrânia — ao vivo e a cores — e expressar opiniões globalmente por meio de redes sociais. No nosso mundo pós-colonial, governos de virtualmente todos os países podem votar para condenar ou perdoar um lado ou outro na guerra da Ucrânia na Assembléia Geral da ONU.

Ainda que as estimativas variem, parece que entre 3 bilhões e 4 bilhões de pessoas no planeta — quase metade da população — possuem smartphones atualmente, e apesar da censura na internet continuar um problema real, particularmente na China, outras tantas pessoas são capazes de perscrutar profundamente outros tantos lugares. E isso não é tudo.

Qualquer um que tenha um smartphone e um cartão de crédito é capaz de ajudar desconhecidos na Ucrânia por meio do Airbnb, simplesmente reservando uma noite em suas residências sem utilizar a hospedagem. Adolescentes de todos os lados são capazes de criar aplicativos no Twitter para rastrear as localizações dos oligarcas russos e seus iates. E o aplicativo de mensagens instantâneas criptografadas Telegram — que foi inventado por dois tecnológicos irmãos russos como uma ferramenta para se comunicar fora do alcance do Kremlin — “emergiu como o lugar certo para obter informações ao vivo e sem filtro da guerra tanto para refugiados ucranianos quanto para russos cada vez mais isolados”, noticiou a NPR. E é administrado a partir de Dubai!

Enquanto isso, o governo da Ucrânia tem conseguido acessar uma fonte de financiamento completamente nova — levantando mais de US$ 70 milhões em criptomoedas com indivíduos de todo o mundo, depois de recorrer às redes sociais para conseguir doações. E o bilionário CEO da Tesla, Elon Musk, ativou o serviço de banda larga via satélite de sua SpaceX para dar cobertura de internet de alta velocidade para a Ucrânia depois que uma autoridade ucraniana entrou em contato com ele via Twitter pedindo ajuda para combater os esforços russos de desconectar o país do restante do mundo.

Empresas de satélites com base nos EUA, como Maxar Technologies, permitiram a todos que vissem imagens captadas do espaço de centenas de pessoas desesperadas fazendo fila diante de um supermercado em Mariupol — apesar de os russos terem cercado a cidade por terra e impedido qualquer jornalista de entrar.

Há também ciberguerreiros capazes de entrar no conflito a partir de qualquer lugar — e que têm feito isso. A CNBC noticiou que “um perfil de Twitter popular, chamado ‘Anonymous’, declarou que o sombrio grupo ativista estava travando uma ‘ciberguerra’ contra a Rússia”. A conta, que possui mais de 7,9 milhões de seguidores globalmente — quase oito vezes o número de seguidores do Exército russo (incluindo cerca de 500 mil novos seguidores Anonymous desde o início da invasão à Ucrânia) — “assumiu responsabilidade por desativar proeminentes websites do governo da Rússia, de meios de comunicação e empresas do país — e vazar dados de entidades como a Roskomnadzor, a agência federal responsável por censurar a mídia russa”.

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Esses jogadores globais não governamentais e superempoderados e suas plataformas não estavam presentes na 1.ª e na 2.ª Guerras.

Guerra local, impacto global

Mas da mesma maneira que tantas pessoas podem afetar esta guerra, mais pessoas podem ser afetadas por ela. Rússia e Ucrânia são exportadores cruciais de trigo e fertilizantes para as cadeias agrícolas de fornecimento que alimentam atualmente o mundo — e que foram interrompidas por esta guerra. Uma guerra entre apenas dois países da Europa elevou os preços dos alimentos para egípcios, brasileiros, indianos e africanos.

E por a Rússia ser um dos maiores exportadores de gás natural, de petróleo e do diesel usado por fazendeiros em seus tratores, as sanções sobre a infraestrutura de energia russa estão prejudicando suas exportações, o que faz com que os preços da gasolina na bomba aumentarem de Minneapolis ao México, a Mumbai, e forçando fazendeiros da Argentina a racionar o uso de tratores movidos a diesel ou cortar o uso de fertilizantes, colocando em risco as exportações agrícolas argentinas e aumentando ainda mais os preços já em elevação dos alimentos pelo mundo.

Há um outro inesperado ângulo financeiro da globalização nesta guerra ao qual você realmente precisa atentar: Putin economizou mais de US$ 600 bilhões em ouro, obrigações de governos estrangeiros e moedas estrangeiras, que ele reuniu com as exportações russas de minérios e energia precisamente para se proteger de sanções do Ocidente. Mas Putin aparentemente se esqueceu que, no mundo conectado de hoje, conforme a prática comum, seu governo depositou a maior parte desses recursos em bancos ocidentais e da China.

De acordo com o GeoEconomics Center, do Atlantic Council, os seis países que mais concentram ativos do Banco Central russo em moeda estrangeira porcentualmente são: China, 17,7%; França, 15,6%; Japão, 12,8%; Alemanha, 12,2%; EUA, 8,5%; e Reino Unido, 5,8%. O Banco de Compensações Internacionais e o Fundo Monetário Internacional detêm 6,4%.

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Todos esses países exceto a China congelaram as reservas russas que mantêm — então, cerca de US$ 330 bilhões estão inacessíveis para Putin, de acordo com o rastreamento do Atlantic Council. Mas ele não apenas está impedido de tocar nessas reservas para impulsionar sua economia, pois haverá um esforço global para direcionar esses recursos para reparações destinadas a reconstrução de casas e prédios de apartamentos dos ucranianos, estradas e estruturas do governo da Ucrânia, que o Exército russo destruiu na guerra escolhida por Putin.

Uma mensagem para Putin: “Obrigado por usar nossos bancos. Será difícil juridicamente apreender seus bens para as reparações, mas é melhor você ir preparando os advogados”.

Um alerta aos autocratas

Por todas essas razões, todos os outros líderes do mundo que derivaram para alguma a versão de capitalismo autoritário ou cleptocracia inspirada em Putin têm com que se preocupar — mesmo que não sejam facilmente desalojáveis, não importa o que acontecer na Rússia.

Esses regimes tornaram-se adeptos do uso de novas tecnologias de vigilância para controlar oponentes e fluxos de informação e manipular políticas e recursos financeiros estatais para se manter agarrados ao poder. Estamos falando de Turquia, Mianmar, China, Coreia do Norte, Peru, Brasil, Filipinas, Hungria e vários países árabes. Putin certamente esperava que um segundo mandato de Donald Trump pudesse transformar os EUA numa versão desse tipo de cleptocracia autoritária e fazer o equilíbrio global pender para seu lado.

E então veio esta guerra. Não há dúvida que a democracia na Ucrânia é frágil e que o país tem seus próprios problemas graves com oligarcas e corrupção. A maior aspiração de Kiev, porém, não era aderir à Otan, era aderir à União Europeia, e o governo ucraniano empreendia um processo de depuração para alcançar esse objetivo.

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Foi isso o que realmente desencadeou esta guerra. Putin jamais permitiria que uma Ucrânia eslava se transformasse numa democracia de livre mercado bem-sucedida da UE bem ao lado de sua estagnante cleptocracia russo-eslava. O contraste teria sido insuportável para Putin, e é por isso que ele está tentando aniquilar a Ucrânia.

Mas acontece que Putin não tinha nenhuma noção a respeito do mundo em que vivia, nenhuma noção a respeito das fragilidades de seu próprio sistema, nenhuma noção a respeito da capacidade de todo o mundo livre e democrático se unir para lutar contra ele na Ucrânia e, acima de tudo, nenhuma noção a respeito de quantas pessoas estariam assistindo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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