Se há estudiosos marcianos examinando os Estados Unidos agora, talvez estejam intrigados com o grande paradoxo de Donald Trump.
Eles observariam que o presidente está causando um imenso estrago de longo prazo nos Estados Unidos ao minar as normas democráticas, vandalizar o governo federal e se aliar a supostos criminosos de guerra no Kremlin, mas, se houver uma queda no apoio a ele, dificilmente ela teria algo a ver com tudo isso. Em vez disso, o problema pode estar... nos preços dos ovos.
Os eleitores americanos têm se sentido, na minha opinião, surpreendentemente à vontade com um criminoso que perdoa outros criminosos violentos e se envolve em ataques imprudentes ao nosso estado de direito e ao sistema global que criamos em 1945, e que enriqueceu e fortaleceu enormemente os EUA.
Trump reforçou sua, hum, “revolução cultural” em seu discurso ao Congresso há alguns dias, e cerca de três quartos dos que assistiram ao discurso o aprovaram até certo ponto (em grande parte porque a audiência era formada desproporcionalmente por republicanos).

Os ataques dos democratas a Trump como antidemocrático nunca tiveram muita repercussão entre os eleitores da classe trabalhadora; eles se importavam menos com questões estratosféricas e mais com preocupações econômicas e culturais. Então, de uma forma estranha, o que pode deter Trump e preservar a democracia americana não é a repulsa popular pelo estrago histórico que ele está causando aos EUA, e sim o alarme com os inúmeros impactos banais em nosso cotidiano por causa da má gestão trumpiana.
As tarifas de Trump, mesmo que parcialmente adiadas, presumivelmente aumentarão os preços ao consumidor e prejudicarão os mercados financeiros e, portanto, nossas poupanças para a aposentadoria; elas criarão uma confusão nas cadeias de fornecimento para produtos manufaturados. Um indicador do que esperar: a estimativa mais recente do Federal Reserve de Atlanta é um declínio surpreendente de 2,4% no PIB americano no primeiro trimestre de 2025.
Não é a democracia, estúpido
Os americanos podem tolerar um presidente que chama jornalistas de inimigos do povo, podem até aceitar um presidente perdoando criminosos que espancam policiais enquanto tentam anular uma eleição. Mas, historicamente, eles não têm sido muito indulgentes com aqueles que presidem em recessões.
Além disso, os republicanos agora estão aparentemente se preparando para cortar o Medicaid para pagar por cortes contínuos de impostos para os ricos. Claro, Trump nega de cima a baixo que cortará o Medicaid. Os republicanos insistem que estão apenas cortando o desperdício e a gordura, que estão simplesmente promovendo requisitos de trabalho e coisas do tipo, que não estão cortando o Medicaid como tal, mas apenas propondo subsídios em bloco aos estados para pagar por ele.
Mas o fato indiscutível é que o governo federal estaria fornecendo menos dinheiro para pagar por assistência médica para os cerca de 72 milhões de americanos no Medicaid. A realidade essencial é que o plano parece cortar a assistência médica para os americanos mais pobres para que os americanos mais ricos possam obter um grande corte de impostos — e isso não é apenas moralmente ultrajante, mas também politicamente arriscado.
É ainda mais provável que os eleitores fiquem preocupados com a crítica de Elon Musk à Previdência Social como um “esquema de pirâmide”, acompanhada por Trump fazendo falsas alegações de fraude generalizada no programa, acompanhadas por conversas a respeito de vender escritórios da Previdência Social.
De forma mais ampla, embora muitos de nós sejamos favoráveis a uma revisão inteligente da equipe federal e um esforço para podar regulamentações e a burocracia excessiva, os ataques de Trump ao governo federal têm sido realizados com uma marreta em vez de um bisturi. Talvez Trump e Musk pensem que os funcionários federais expulsos de seus empregos sejam burocratas sem rosto que não serão notados, mas, quando eles são profissionais de saúde em um hospital de veteranos de guerra, os pacientes notarão. Quando eles gerenciam programas agrícolas, os fazendeiros sentirão sua ausência.
Risco nos céus
Cortes na Administração Federal de Aviação e no Serviço Nacional de Meteorologia e NOAA tornarão os voos menos seguros, argumenta James Fallows de forma persuasiva; em um momento em que eventos climáticos extremos estão se tornando mais comuns, é bizarro reduzir nossa capacidade de prever furacões, tornados e ondas de calor.
Nos estados ocidentais, já estamos com medo de como os cortes de Trump prejudicarão o combate a incêndios durante a próxima temporada de incêndios. Nem sempre será evidente se um acidente de avião ou um incêndio violento pode ser atribuído a Trump. Mas, dado que Trump e Musk foram extremamente descuidados, misturando milhões e bilhões e inicialmente cortando programas para controle do ebola e gerenciamento de armas nucleares antes de correrem para tentar retificar esses problemas, talvez eles não recebam o benefício da dúvida.
Em suma, a incompetência e a imprudência de Trump e Musk podem — apenas podem — desacreditar os vândalos em Washington e controlá-los.
A vingança das galinhas
É realmente razoável culpar Trump pelo aumento dos preços dos ovos? Talvez não. Isso tem mais a ver com a gripe aviária de longa duração do que com tarifas ou qualquer outra coisa que ele tenha feito. É verdade que Trump minou o sistema de vigilância para a gripe aviária, e o ceticismo de Robert F Kennedy Jr. em relação às vacinas tornará os americanos mais vulneráveis à gripe aviária se enfrentarmos uma pandemia. Mas a má gestão de Trump não é um fator importante no aumento atual dos preços dos ovos.
Então, se eu preferiria que os eleitores se revoltassem com a traição de Trump à Ucrânia, suas ameaças à Otan e sua campanha para minar a democracia? Claro que sim! Mas eu acolho qualquer tipo de indignação. Talvez as galinhas possam resgatar os americanos do curso desastroso do seu país. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL