Ativistas antiaborto dos EUA colocam caixas em hospitais e quartéis para entrega de bebês

As ‘Safe Haven Baby Box’ permitem que mães deixem bebês de forma anônima; projeto tem questionamentos e brechas na legislação

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Por Dana Goldstein
Atualização:

A “Safe Haven Baby Box”, instalada em um quartel do Corpo de Bombeiros em Carmel, Indiana, é parecida com caixas de devolução de livros em bibliotecas. Estava disponível havia três anos para qualquer mulher que quisesse entregar seu recém-nascido para adoção anonimamente, mas nunca tinha sido utilizada até o início de abril. Quando o alarme do equipamento disparou, o bombeiro Victor Andres abriu a “baby-box” e encontrou um recém-nascido embrulhado em toalhas – e não conseguia acreditar no que estava vendo.

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O acontecimento foi noticiado pelos meios de comunicação locais, que elogiaram a coragem da mãe, qualificando a situação como “um momento de celebração”. Posteriormente, no mesmo mês, Andres retirou outro bebê da caixa. Em maio, um terceiro apareceu. E desde então, mais três recém-nascidos foram deixados em baby-boxes instaladas em outros pontos do Estado.

As baby-boxes são parte de um movimento de acolhimento seguro para adoção com uma ligação próxima – e de muito tempo – do ativismo antiaborto. Segundo os defensores do movimento, esses mecanismos de acolhimento oferecem a mães uma maneira de entregar recém-nascidos para adoção anonimamente, evitando que os bebês sejam machucados, abandonados ou até mortos. O acolhimento seguro pode estar numa dessas caixas, que permitem às mães evitar ter de falar com qualquer pessoa e até mesmo ser vistas no momento em que entregam os bebês.

Mais tradicionalmente, as caixas de acolhimento são instaladas em hospitais e quartéis dos Bombeiros, onde os funcionários também são preparados para aceitar uma entrega cara a cara, de alguma mãe em crise.

Caixa de entrega de bebês em Carmel, Indiana, em imagem do dia 7 de julho. Mecanismo permite que mães entreguem seus bebês para adoção de maneira anônima Foto: Kaiti Sullivan / NYT

Todos os 50 Estados possuem leis para acolhimento seguro de recém-nascidos destinadas a proteger as mães que entregam os bebês de acusações criminais. A primeira legislação desse tipo, conhecida como lei “Bebê Moisés”, foi aprovada em 1999 no Texas, depois de várias mulheres terem abandonado recém-nascidos em lixeiras. Mas o que teve início como uma maneira de evitar casos mais extremos de abuso infantil se tornou um fenômeno mais amplo, apoiado especialmente por grupos religiosos de direita que promovem com firmeza a adoção como alternativa ao aborto.

Ao longo dos últimos cinco anos, mais de 12 Estados aprovaram leis permitindo a instalação de baby-boxes ou expandindo opções de acolhimento seguro de recém-nascidos por outras vias. E, de acordo com especialistas em saúde reprodutiva e assistência infantil, mulheres entregando bebês para a adoção tendem a ser mais comuns após a decisão da Suprema Corte de reverter Roe versus Wade.

Durante a fase de argumentações orais no caso Dobbs versus Jackson Women’s Health Organization, a ministra Amy Coney Barrett sugeriu que leis de acolhimento seguro de recém-nascidos oferecem uma alternativa ao aborto ao permitir às mulheres evitar “os fardos da maternidade”. Na decisão da corte, o ministro Samuel Alito Jr. citou leis de acolhimento de bebês como um “desdobramento moderno”, que, na visão da maioria do tribunal, anula a necessidade do direito ao aborto.

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Mas para muitos especialistas em adoção e saúde da mulher, esses mecanismos dificilmente solucionam a equação.

Para eles, uma entrega de bebê sinaliza que a mulher sofreu entre brechas existentes no sistema. Elas podem ter escondido as gestações e dado à luz sem cuidados pré-natais – e ter sofrido com violência doméstica, vício em drogas, doenças mentais, ou vivido como sem-teto.

As adoções também podem ser problemáticas, com mulheres que possivelmente não têm consciência plena de que estão colocando fim aos seus direitos de maternidade, e seus filhos obtendo pouca informação a respeito de suas origens.

Se uma mãe está entregando o bebê, “há uma crise, e o sistema já fracassou de alguma maneira”, afirmou Ryan Hanlon, presidente do Conselho Nacional para Adoção.

Impulsionando o movimento

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As entregas de bebês ainda são raras. A National Safe Haven Alliance estima que 115 entregas legais de recém-nascidos ocorreram em 2021. Nos anos recentes, houve 100 mil adoções de bebês nascidos nos EUA anualmente – e mais de 600 mil abortos. Estudos mostram que a vasta maioria das mulheres a quem não lhes é permitido o aborto não se interessa em entregar seus recém-nascidos para adoção e opta por criar os filhos.

Mas o movimento pelo acolhimento seguro para adoção tem se tornado muito mais proeminente, em parte por causa do impulso de Monica Kelsey, líder carismática com raízes no ativismo antiaborto e fundadora da ONG Safe Haven Baby Boxes.

Com Kelsey e seus aliados fazendo lobby em todo o país, Estados como Indiana, Iowa e Virgínia têm conseguido facilitar entregas de bebês para adoção, tornando-as mais ágeis e mais anônimas – permitindo que bebês mais velhos sejam deixados nas baby-boxes ou permitindo às mães a sair dos locais de entrega de recém-nascidos sem ter de conversar com ninguém nem compartilhar o histórico médico.

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Monica Kelsey, fundadora da Safe Haven Baby Boxes, próxima a uma das 'caixas seguras' para adoção de bebê em Carmel, Indiana, em imagem de 7 de julho. Influência da americana impulsiona projetos da mesma natureza em outros estados americanos Foto: Kaiti Sullivan / NYT

Algumas pessoas que trabalham com processos de adoção estão preocupadas com as baby-boxes, em particular. Há atualmente mais de 100 espalhadas pelo país.

“Esse bebê está sendo entregue sem coerção?”, perguntou Micah Orliss, diretor da Clínica para Acolhimento Seguro do Hospital Infantil de Los Angeles. “Trata-se de uma mãe em situação difícil que poderia se beneficiar de algum tempo para pensar e uma experiência acolhedora para entrega do bebê antes de tomar sua decisão?”

Kelsey é ex-paramédica e ex-bombeira, foi adotada e afirma que foi abandonada no nascimento por sua mãe, uma adolescente que havia sido estuprada.

Ela se deparou pela primeira vez com um “cilindro” de bebê – conceito que data da Idade Média na Europa – quando visitou uma igreja na Cidade do Cabo, na África do Sul, em 2013, onde ela participou de um tour de palestras em defesa da abstinência sexual.

Ao voltar para Indiana, ela fundou sua ONG, a Safe Haven Baby Boxes, e instalou sua primeira baby-box em 2016.

Bombeiro em estação onde bebê foi deixado em caixa de projeto para acolhimento de bebês, em imagem de 7 de julho de 2022. Funcionários são treinados para este tipo de acolhimento Foto: Kaiti Sullivan/NYT

Para usar as caixas de Kelsey, a mãe abre uma gaveta metálica que contém um berço hospitalar com temperatura controlada. Uma vez que o bebê é depositado e a gaveta é fechada, a caixa se tranca automaticamente; e não pode ser reaberta. Um alarme silencioso é disparado, e os funcionários da entidade em que a caixa está instalada podem abri-la do lado de dentro. A caixa também emite uma chamada ao telefone público de atendimento de emergências (911). Vinte um bebês foram deixados nessas caixas desde 2017, e o tempo que os recém-nascidos permanecem na caixa em média é inferior a dois minutos, afirmou Kelsey.

Kelsey levantou financiamento para instalar dúzias de outdoors divulgando essa opção de acolhimento seguro para bebês entregues à adoção. Os anúncios exibem a foto de um charmoso bombeiro segurando um recém-nascido e o telefone para emergências da Safe Haven Baby Box.

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A fundadora também afirmou que está em contato com legisladores de todo o país interessados em levar as baby-boxes para suas regiões e previu que, em até cinco anos, as caixas de sua entidade estarão em todos os 50 Estados. “Todos podemos concordar que um bebê deveria ser deixado na minha caixa em vez de ser abandonado em uma lixeira para a morte”, afirmou ela.

Em razão do anonimato, há poucas informações a respeito das mães que usam mecanismos de acolhimento de recém-nascidos para adoção. Mas Orliss, da clínica de acolhimento para adoção em Los Angeles, realiza avaliações em psicologia do desenvolvimento em 15 desses bebês adotados anualmente, com frequência acompanhando-os por toda sua infância. A pesquisa constatou que mais da metade das crianças apresentam problemas mentais ou de desenvolvimento, com frequência decorrentes da falta de cuidado pré-natal. Na Califórnia, ao contrário de Indiana, a entrega de bebês para adoção tem de ser feita cara a cara, e as mães recebem questionários sobre seu histórico médico, de preenchimento opcional, que com frequência revelam problemas graves, como uso de drogas.

Grupos pró e contra aborto diante da sede da Suprema Corte dos EUA após decisão Roe vs Wade ser derrubada, em 24 de junho. Grupos defensores das medidas de acolhimento de bebês, em sua maioria, se posiciona contra o aborto Foto: Anna Rose Layden / NYT

Ainda assim, muitas crianças crescem bem. Tessa Higgs, de 37 anos, gerente de marketing que vive no sul de Indiana, adotou sua filha de 3 anos, Nola, depois que ela foi deixada em uma baby-box horas depois de seu nascimento. Higgs afirmou que a mãe biológica tinha ligado para o telefone da Safe Haven Baby Box depois de ver um dos outdoors de divulgação do grupo.

“Desde o primeiro dia ela está supersaudável e feliz, se desenvolvendo bem e superando todos os marcos do crescimento”, afirmou Higgs a respeito de Nola. “Para nós ela é perfeita.”

Áreas jurídicas cinzentas

Para algumas mulheres em busca de ajuda, o primeiro ponto de contato é o telefone de emergência da Safe Haven Baby Box.

Para algumas mulheres em busca de ajuda, o primeiro ponto de contato é o telefone de emergência da Safe Haven Baby Box.mlas podem entregar legalmente seus bebês e fornecem informações a respeito dos mecanismos tradicionais de adoção.

Os grupos de acolhimento de recém-nascidos para adoção afirmam que informam às mães que a entrega dos bebês é um último recurso e que lhes fornecem informações sobre como conseguir cuidar de seus bebês, incluindo maneiras de obter fraldas, seguro-aluguel e acesso a creches.

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“Quando uma mulher ouve suas opções, ela escolhe o que é melhor para ela”, afirmou Kelsey. “E se isso significar que, em seu momento de crise, ela escolher a baby-box, todos devemos apoiá-la em sua decisão.”

Entretanto, a linha de atendimento de emergência de Kelsey não menciona as restrições temporais previstas na lei para poder reassumir a guarda do bebê a não ser que as mães peçam informações sobre isso, afirmou Kelsey.

Imagem de uma caixa de bebê vista na parte interna de um quartel de Bombeiros, que recebem os bebês poucos minutos depois deles serem colocados pelas mães do lado de fora Foto: Kaiti Sullivan / NYT

Em Indiana, onde fica a maioria das baby-boxes em atividade, a lei estadual não especifica um cronograma para o fim dos laços maternais após os bebês serem entregues, nem para sua adoção. Mas de acordo com Don VanDerMoere, procurador do Condado de Owen, Indiana, que tem experiência com leis de abandono de incapaz no Estado, as famílias biológicas são livres para se manifestar até que um tribunal determine o fim dos direitos das mães biológicas sobre o bebê, o que pode ocorrer em um prazo de 45 a 60 dias após a entrega anônima do recém-nascido.

Em razão dessas entregas serem anônimas, elas levam tipicamente a processos de adoção vedados. Os pais biológicos são incapazes de selecionar os pais adotivos, e poucos registros são deixados para os filhos a respeito da origem de sua família e seu histórico médico.

Hanlon, do Conselho Nacional para Adoção, citou pesquisas que revelam que, no longo prazo, os pais biológicos se sentem mais satisfeitos a respeito da opção de entregar seus filhos para adoção se as famílias biológicas e adotivas mantêm uma relação.

E nos casos das baby-boxes, se uma mãe muda de ideia, ela tem de provar ao Estado que é capaz de criar o bebê.

De acordo com Kelsey, desde que sua atividade se iniciou, duas mulheres que afirmaram ter colocado recém-nascidos nas caixas tentaram reassumir a custódia dos filhos. Esses casos podem levar meses ou até anos para se resolver.

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Mães biológicas também não são imunes a riscos jurídicos e podem ser incapazes de navegar pelas tecnicalidades de cada lei estadual de acolhimento seguro e adoção, afirmou Lori Bruce, especialista em ética médica de Yale.

Enquanto muitos Estados protegem mães que entregam recém-nascidos para adoção de serem processadas criminalmente se os bebês forem entregues saudáveis e sem sinais de maus-tratos, mães que enfrentam crises graves — lidando com vício ou abuso doméstico, por exemplo — podem não ser protegidas se os recém-nascidos forem afetados de alguma forma.

A possibilidade de uma puérpera vítima de traumas ser capaz de “pesquisar corretamente as leis no Google é baixa”, afirmou Bruce.

Com o fim de Roe, “sabemos que vamos ver mais bebês abandonados”, acrescentou ela. “Minha preocupação é que isso possibilite a mais promotores públicos processar mulheres por ter abandonado seus filhos de maneira arriscada — ou de não ter seguido a letra da lei”.

Na sexta-feira, o governador de Indiana sancionou uma lei que bane abortos na maioria dos casos, prevendo poucas exceções.

E o movimento das baby-boxes continua acelerando. Higgs, a mãe adotiva, permaneceu em contato com Monica Kelsey, da Safe Haven Baby Boxes. “O dia que soube o que aconteceu com Roe versus Wade, mandei uma mensagem de texto para Monica do tipo, ‘Você está pronta para ficar ainda mais ocupada?’.”/ TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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