Coronavírus silencia movimentos de protesto no mundo todo

Hong Kong, Índia, Chile: manifestações em diferentes países são interrompidas por quarentenas e futuro de movimentos é incerto

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Por Vivian Wang, Maria Abi-Habib e Vivian Yee

HONG KONG - O gás lacrimogêneo já não sufoca os arranha-céus de Hong Kong. As tendas dos manifestantes foram desmanteladas no centro de Beirute. Em Délhi, um estranho garfo de plástico e um cobertor esfarrapado são tudo o que resta do protesto que chegou a bloquear uma das rodovias mais movimentadas do Estado.

Em todo o mundo, a pandemia de coronavírus acalmou protestos antissistema que eclodiram no ano passado, interrompendo repentinamente meses de marchas, manifestações e motins. Hoje, como todo o resto do mundo, os protestos enfrentam a pergunta irrespondível: o que vai acontecer agora?

Praça e mTsim Sha Tsui foi palco de diversos protestos em 2019, mas agora está vazia Foto: Lam Yik Fei/The New York Times

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Quanto tempo ainda vai durar a pandemia e como os governos e ativistas irão reagir? Isto ditará se a interrupção representa uma pausa passageira, um momento de metamorfose ou um término incerimonioso para algumas das mobilizações de massa mais disseminadas da história recente.

Os desafios são visíveis. Milhões de manifestantes estão fechados em casa, paralisados por quarentenas e por receios quanto à própria saúde. O fardo cotidiano de adquirir máscaras e alimentos ofusca os debates sobre corrupção e abuso de poder.

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Quase todos os governos restringiram as reuniões de massa, na tentativa de proteger ostensivamente a saúde pública, mas acabando por estrangular as futuras mobilizações. Alguns se valeram do surto para consolidar seu poder ou prender adversários políticos.

Mas os custos econômicos da pandemia, bem como as crises de confiança que ela vem inspirando em muitos governos, podem alimentar uma nova onda de revolta. Pessoas do Estado de Washington, do Peru e de Paris já se opuseram às medidas da quarentena que, segundo elas, ameaçam seus empregos, moradia e suprimentos de comida.

Os manifestantes também encontraram novas maneiras de expressar seu descontentamento. Ativistas chilenos projetaram imagens de multidões nas ruas vazias. Em Hong Kong, um sindicato de profissionais de saúde nascido dos protestos pró-democracia entrou em greve para criticar a reação do governo ao surto. Em todo o mundo, as pessoas vêm organizando workshops online, batendo panelas e frigideiras e realizando comícios com distanciamento social.

Impacto 

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“É hora de ficar em casa, mas, definitivamente, não é o fim do movimento”, disse Isaac Cheng, líder estudantil do Demosisto, um importante grupo pró-democracia de Hong Kong. Os protestos de Hong Kong foram os primeiros a sentir os efeitos assustadores do vírus.

As manifestações começaram em junho, em oposição a um projeto de lei que permitiria extradições de Hong Kong para a China continental, e logo se tornaram as maiores da história de Hong Kong, com milhões de pessoas marchando para denunciar a brutalidade policial e a crescente influência de Pequim sobre a cidade.

Mas em janeiro, quando começaram a se espalhar notícias sobre um vírus misterioso na China, muitos passaram a evitar as multidões. A paralisia se fez oficial em março, quando autoridades proibiram reuniões públicas com mais de quatro pessoas. Desde então, a polícia prendeu manifestantes em protestos esporádicos.

“O que podemos fazer?”, disse Max Chung, ativista que foi preso em julho do ano passado por organizar um protesto com centenas de milhares de pessoas. “Quando for a hora certa, é claro que vou organizar outros protestos. Mas agora é impossível”.

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A combinação de ordens governamentais com hesitação popular também paralisou protestos em outros países.

Na Argélia, os protestos de rua que aconteciam duas vezes por semana e assolaram o país por mais de um ano se esvaziaram em março, quando os manifestantes concordaram em se concentrar no combate ao vírus - uma decisão solidificada por um novo decreto proibindo manifestações públicas no país.

Quando a conscientização sobre o vírus começou a se espalhar em Beirute, os manifestantes passaram a vestir máscaras para bradar contra a corrupção e o sectarismo religioso. Mas, pouco depois, eles tiveram de se dispersar sob a quarentena nacional e, no mês passado, as forças de segurança desmantelaram os acampamentos onde os manifestantes dormiam, davam cursos e dançavam ao som de hinos revolucionários.

Libaneses protestam em Beirute usando máscaras no dia 23 de abril Foto: REUTERS/Mohamed Azakir

Reações 

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Tentativas de desafiar as restrições suscitaram reações não apenas por parte do governo, mas também de aliados. Quando opositores a uma lei antimuçulmana na Índia disseram que continuariam protestando durante a quarentena, até mesmo seus apoiadores os criticaram por serem imprudentes.

As restrições às aglomerações não se limitam aos países que vinham enfrentando movimentos de massas, disse Clément Voule, relator especial das Nações Unidas sobre liberdade de reunião e associação. “Não sei de nenhum país em que as pessoas possam exercer plenamente esses direitos nos dias de hoje”, disse ele.

Embora seja preciso ter cautela, o medo natural dos manifestantes diante do vírus pode levá-los a aceitar ou mesmo adotar restrições com consequências de amplo alcance, disse ele.

Com o esvaziamento das ruas e praças públicas, os governos já começaram a reintroduzir algumas das medidas que desencadearam protestos anteriores.

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O Equador explodiu em violência em outubro do ano passado, quando o presidente Lenín Moreno anunciou a eliminação de um antigo subsídio aos combustíveis. Pelo menos dez pessoas morreram e Moreno voltou atrás. Mas, na segunda-feira 20, o ministro da Energia do país renovou o pedido de revogação do benefício.

Em Hong Kong, a polícia prendeu no sábado (dia 15) líderes ativistas da luta pela democracia - o maior grupo de lideranças da oposição da história recente. As prisões ocorreram depois de várias semanas de uma retórica extraordinariamente agressiva por parte do Partido Comunista Chinês, reafirmando seu controle sobre Hong Kong, um território semiautônomo com Constituição própria.

Alguns cidadãos de Hong Kong ficaram particularmente preocupados com as renovadas pressões de Pequim para a cidade promulgar leis contra traição e subversão. Em 2003, um esforço semelhante fracassou por causa de protestos em massa.

“Este é o plano do governo: assustar as pessoas e, quando chegar a hora de o movimento reacender, haverá cada vez menos pessoas nas ruas”, disse Chung, o estudante ativista.

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Samia Khan, ativista na Índia, disse que já vinha observando fraturas nas amplas coalizões que apoiavam os protestos no país. Centenas de milhares de indianos de todas as religiões se uniram contra uma lei que discriminava flagrantemente os muçulmanos.

Mas as tensões entre muçulmanos e hindus aumentaram, atiçadas pelo governo do primeiro-ministro Narendra Modi. As autoridades culparam um protesto em uma mesquita de Délhi por espalhar o coronavírus no país, e alguns sugeriram que os muçulmanos transmitiam o vírus intencionalmente.

“Este governo tem sorte”, disse Khan, que ajudou a organizar uma manifestação que bloqueou uma das principais estradas do estado de Délhi. “Acabou com o maior desafio que enfrentou desde que foi eleito usando a desculpa da pandemia”.

Mas as agressivas restrições governamentais implicam seus próprios riscos: a saber, dar nova vida às queixas existentes e criar novas.

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Milhares de pessoas em todo o mundo já desafiaram as ordens de quarentena para protestar contra as reações de seus governos à pandemia.

Nesta semana, confrontos violentos eclodiram nos subúrbios de baixa renda e habitados por imigrantes de Paris. Os moradores denunciaram o que chamaram de mão pesada e racista na imposição do lockdown na França. Na segunda-feira, centenas de peruanos de baixa renda tentaram sair de Lima para voltar a suas cidades natais, mas foram barrados com bombas de gás lacrimogêneo da polícia.

Em Paris, homem dispara fogos de artício durante confrontos com a polícia Foto: GEOFFROY VAN DER HASSELT / AFP

Os iraquianos voltaram às ruas para denunciar a escassez de empregos e renda que foi exacerbada pelas ordens de quarentena. Alguns manifestantes da classe trabalhadora, cujos salários desapareceram, voltaram a lotar as ruas na última semana em uma cidade libanesa. Muitos outros manifestantes protestaram em seus carros ou a pé em várias cidades do país.

Nos Estados Unidos, ativistas conservadores, incentivados pelo presidente Donald Trump, protestaram contra as ordens de quarentena, apesar dos pedidos de especialistas em saúde pública e profissionais de saúde.

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Outros encontraram novas maneiras criativas de protestar. Na Colômbia, onde grandes greves no ano passado exigiram aumentos salariais e mais financiamento público, as famílias mais pobres penduraram camisetas e panos vermelhos nas janelas como símbolo de protesto e para sinalizar que precisam de comida. Em Hong Kong, o jogo de videogame ‘Animal Crossing’, que possibilita que os jogadores se encontrem com os amigos online, se tornou a mais recente frente de protesto, pois nela adolescentes presos em casa podem compartilhar palavras de ordem virtuais.

A China apresentou uma prévia do descontentamento econômico que a pandemia pode causar depois do fim da quarentena: embora o governo central sufoque rapidamente qualquer agitação, os relatórios sobre mídias sociais mostraram que os trabalhadores estão exigindo reduções de aluguel e outros benefícios.

“Incompetência do governo e crise econômica - meu Deus do céu”, disse Thomas Carothers, especialista em democracia que supervisiona um rastreador de protestos globais no Carnegie Endowment for International Peace, um think tank de Washington. “Se você está no poder, fique sabendo que estão chegando tempos muito difíceis”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU