THE NEW YORK TIMES - A França pode respirar novamente. No domingo, o presidente Emmanuel Macron foi reeleito, tendo 58,5% dos votos ante 41,5% de Marine Le Pen. Depois de algumas semanas agonizantes em que o país contemplou a possibilidade de a presidência cair no colo da extrema direita, o resultado parecia a volta à normalidade, como de costume.
Mas é prematuro comemorar. A democracia francesa, na verdade, nunca esteve em pior estado de saúde. Macron obteve dois milhões de votos a menos do que em 2017, e os dois principais partidos do pós-guerra, os republicanos e os socialistas, praticamente entraram em colapso. Em seu rastro, a política francesa agora é impulsionada por três forças - encabeçadas por Macron, Le Pen e o esquerdista Jean-Luc Mélenchon - puxando em direções opostas. Adicione a isso níveis recordes de abstenção e você terá uma receita para a instabilidade.
Mas o problema vai além da política. A presidência divisiva de Macron deu origem a uma extraordinária explosão de raiva e ressentimento popular. Isso assumiu muitas formas, desde os protestos dos coletes amarelos - um movimento inicialmente contra o aumento do imposto sobre os combustíveis que se transformou em oposição total ao presidente - até guerras culturais viscerais. O povo francês foi ao mesmo tempo animado e anestesiado nos últimos cinco anos. O clima nacional, dado a surtos febris e retiradas dolorosas, está inquieto.
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Essa mistura de sentimentos voláteis não vai a lugar nenhum. Nos próximos anos, à medida que o país lida com as consequências contínuas da pandemia, crises geopolíticas e aumentos de preços, pode haver muitos motivos para instabilidade. Macron ganhou, sim. Mas a França ainda está em apuros.
Certamente, houve gritos de desespero semelhantes em 2002, quando Jean-Marie Le Pen chegou ao segundo turno. Mas a situação então era muito mais contida: foi considerado um show de horrores, um ponto fora da curva. Jacques Chirac, que ganhou com 82%, estava tão confiante na vitória que se recusou a debater com seu oponente. Um milhão de pessoas foi às ruas de Paris para “deter o fascismo”, e os eleitores acorreram a Chirac, um candidato de centro-direita, para garantir que Le Pen não tivesse chance de vitória.
As coisas desta vez pareciam muito diferentes. Quando a filha de Le Pen, Marine, chegou ao segundo turno pela segunda eleição consecutiva, ninguém ficou surpreso - e ninguém marchou em protesto. A “frente republicana”, uma coalizão emergencial de eleitores e partidos tradicionais contra a extrema direita, estava mais fraca do que nunca. A vitória de Macron esteve por um tempo seriamente em dúvida e longe de ser enfática quando veio. A extrema direita pode ter sido detida nas urnas desta vez, mas suas ideias e candidatos agora fazem parte do cenário político.
A eleição em 2017 parece, em retrospecto, ter sido uma oportunidade perdida. Macron, um recém-chegado na política, falou em defender os valores republicanos franceses de liberdade, igualdade e fraternidade. Ele prometeu estabelecer instituições políticas mais democráticas e responsabilizar as elites por seus excessos. Ele prometeu enfrentar o legado colonial da França e reconheceu a diversidade cultural e religiosa francesa. Para muitos, foi uma lufada de ar fresco. Ali estava um jovem presidente com um mandato e um motivo para renovar a democracia e a sociedade francesas.
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Isso não aconteceu. No início de seu mandato, Macron foi comparado a Justin Trudeau, trazendo energicamente a reforma progressista para um país cansado. Hoje, os críticos de Macron o veem como um líder muito diferente: uma versão francesa de Margaret Thatcher. Seus cinco anos no cargo foram marcados pelo desprezo pela supervisão democrática, condescendência com a pobreza e crueldade com os migrantes. No processo, ele decepcionou e até enfureceu aqueles que esperavam que ele fosse fiel à sua promessa de campanha de ser o presidente de todos.
Politicamente, os efeitos têm sido preocupantes. Ao desviar grande parte dos eleitores de centro-esquerda e centro-direita, Macron ajudou a provocar o fim dos dois principais partidos da França. Como resultado, a política se fragmentou e os debates se polarizaram.
As oposições partidárias tradicionais em questões socioeconômicas foram suplantadas por intermináveis guerras culturais contra o Islã, a imigração e a identidade nacional. Nessa atmosfera, a esquerda sob o comando de Mélenchon se radicalizou, conquistando o apoio dos jovens e multirraciais, mas afastando os eleitores de esquerda mais moderados.
A extrema direita, por sua vez, aproveitou a oportunidade para posar como a única força de oposição plausível ao presidente. Em uma sociedade desiludida e insatisfeita, isso encontrou eco.
Éric Zemmour, o comentarista da mídia que se tornou político, abriu o caminho ao defender posições extremas sobre o Islã e a imigração. Le Pen, suavizando sua imagem, seguiu em sua esteira. A estratégia foi bem-sucedida: cerca de um terço do eleitorado votou no primeiro turno para a extrema direita, uma alta sem precedentes.
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O aumento do apoio à extrema direita nunca é fácil de explicar. Mas é claro que expressa, entre outras coisas, uma raiva amorfa que se espalha por toda a França. Os coletes amarelos, cujos membros vieram de todo o espectro político, ilustraram a profundidade da inquietação no país - algo que a pandemia parece apenas ter exacerbado.
Nos últimos dois anos, um vigoroso movimento antivacina se enraizou. As velhas ideologias do socialismo e do conservadorismo foram substituídas por teorias da conspiração e confusão política.
Isso é perigoso. Nas duas últimas semanas da campanha, Macron ofereceu concessões à esquerda, entre elas a revisão de uma reforma previdenciária e um novo compromisso com a proteção ambiental.
Já superficiais, essas promessas pouco fazem para sugerir que o presidente mude de rumo. Se não o fizer, a raiva e a amargura de seus compatriotas certamente aumentarão. Isso poderia significar movimentos sociais mais radicalizados da esquerda e ressentimento rancoroso da extrema direita. As eleições legislativas de junho podem ser uma amostra antecipada das dificuldades que estão por vir.
Longe de uma democracia modelo, a França é um país pouco à vontade com pluralismo, multiculturalismo e liberalismo político - uma condição revelada pela ascensão constante da extrema direita. Isso já seria ruim o suficiente. Mas é difícil dissipar a sensação de que algo pior pode estar ao virar da esquina.
*Marlière é professor de política francesa e europeia na University College London
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