Disney é novo fetiche da direita conservadora americana; leia o artigo de Paul Krugman

Ataques dos republicanos contra a gigante do entretenimento, que prejudicarão a economia do Estado, refletem um tombo súbito na direção da intolerância nos EUA

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Por Paul Krugman
5 min de leitura

THE NEW YORK TIMES - Até recentemente, o confronto entre o grupo Disney e o Estado da Flórida poderia parecer inconcebível. Os ataques dos republicanos contra a gigante do entretenimento, que prejudicarão a economia do Estado, refletem um tombo súbito na direção da intolerância num país que parecia cada vez mais tolerante; e as alegações contra a Disney são, em uma palavra, insanas.

Mas o que está acontecendo na Flórida faz sentido uma vez que a gente se dá conta de que o objetivo do governador, Ron DeSantis, e seus aliados não tem nada a ver com políticas – nem com a política no sentido convencional. Testemunhando, em vez disso, sintomas da transformação do Partido Republicano, de partido político normal em um movimento radical fundamentado em teorias de conspiração e intimidação.

A respeito da economia: poucos meses atrás, The Tallahassee Democrat, um jornal local, publicou um artigo intitulado “O rato que não precisa rugir”, argumentando que o imenso papel da Disney World na economia da Flórida lhe conferiu uma influência política indiscutível.

Disney perderá estatuto especial sobre impostos na Flórida Foto: Matt Stroshane

Dívida e impostos

Mais diretamente, a Disney World localiza-se num “distrito especial” de 10 mil hectares, no qual a empresa provê serviços públicos básicos mesmo pagando os impostos sobre propriedade. Na semana passada, porém, DeSantis sancionou uma lei que elimina esse distrito, o que deixará os contribuintes locais em dificuldades – e também lhes impingirá uma dívida de mais de US$ 1 bilhão.

Além disso, o resort dá emprego a um número enorme de pessoas e atrai milhões de visitantes todos os anos – visitantes que gastam dinheiro que impulsiona a economia da Flórida. E, de maneira menos tangível, a Disney certamente contribuiu para a imagem da Flórida enquanto lugar agradável para visitar e viver. A indústria de lazer e hospitalidade do Estado é gigantesca, e a Disney World é uma importante razão para isso.

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Tudo isso, porém, foi colocado em risco quando a Flórida aprovou a lei “Don’t Say Gay” (“Não fale a palavra gay”), que não apenas restringiu o que as escolas podem dizer a respeito de gênero, mas também limitou sua capacidade de aconselhar estudantes em relação a dúvidas, dificuldades ou problemas sem o consentimento de seus pais e abriu caminho para os pais processarem as instituições por violações de regras vagamente definidas.

O governador da Flórida, Ron DeSantis  Foto: John Raoux/AP

Novos costumes e imagem pública

O grupo Disney não disse nada a respeito da legislação durante a tramitação. Mas uma empresa de entretenimento cujos negócios dependem em parte de sua imagem pública não pode parecer desalinhada em relação a costumes sociais predominantes. E a sociedade americana como um todo se tornou muito mais aberta em relação a questões LGBTQ do que costumava ser.

A aprovação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo cresceu de 27%, em 1996, para 70%, no ano passado. Então, antes tarde do que nunca – e depois da aprovação da legislação –, o CEO do grupo Disney finalmente declarou que sua empresa era contra a lei. A resposta republicana foi radical – mas, afinal, nestes dias, tem sido sempre assim.

Não muito tempo atrás, usar o poder do Estado para impor penalidades financeiras sobre corporações em razão de as empresas terem expressado posições políticas das quais você discorda seria considerado inaceitável. Na realidade, pode ser até inconstitucional.

Teorias da conspiração contra o Mickey

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Mas o ataque contra o grupo Disney foi muito além da represália financeira: de repente, o Mickey Mouse virou parte de uma vasta conspiração. A vice-governadora da Flórida deu declarações ao site da Newsmax acusando o grupo Disney de “doutrinar” e “sexualizar as crianças” com sua “agenda nada secreta”.

Parece loucura – e realmente é –, mas essa tem sido cada vez mais a norma dos republicanos. A cobertura política não percebeu o quão profundamente “QAnonizado” o Partido Republicano se tornou.

Como mencionei outro dia, cerca de metade dos republicanos acredita que “democratas graduados estão envolvidos em redes de elite de tráfico sexual”. Aqui vai um número mais impressionante: 66% dos republicanos acreditam na “teoria da substituição dos brancos”, concordando completamente ou em parte com a alegação de que “o Partido Democrata está tentando substituir o atual eleitorado por eleitores vindos de países pobres de todo o mundo”.

Em função dessa mentalidade, republicanos adotaram políticas projetadas para jogar com a paranoia da base e acusam qualquer um que se oponha a essas políticas de fazer parte de uma nefasta conspiração.

E a bizarra natureza dos ataques contra o grupo Disney não adula apenas a loucura da base republicana; a magnitude do absurdo dos ataques é também uma mensagem de intimidação para o mundo dos negócios que afirma: “Não importa como você conduz seus negócios, quão inócuo seu comportamento é realmente. Se você criticar nossas ações, ou se abstiver de alguma maneira de demonstrar lealdade à nossa causa, vamos encontrar alguma maneira de puni-lo”.

Extremismo e paranoia

O exemplo óbvio nesse sentido é a Hungria de Viktor Orbán, onde a Conferência de Ação Política Conservadora será organizada em maio. Conforme coloca um relatório recente da Freedom House, na Hungria, “empresários cujas atividades não estejam alinhadas com o interesse financeiro ou político do governo tendem a enfrentar assédio e intimidação; e são submetidos a crescente pressão administrativa para uma possível aquisição”.

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Portanto, a briga em torno da Disney é, na realidade, sintoma de um desdobramento muito mais amplo e perturbador: a “QAnonização” (popularização de um grupo político que propaga teorias de conspiração de extrema direita) e a “orbanização” de um dos maiores partidos políticos dos EUA, o que coloca nossa democracia em risco. TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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