THE WASHINGTON POST - Quando o presidente americano, Joe Biden, desembarcou em Bruxelas na quarta-feira para conversas urgentes sobre a guerra da Rússia contra a Ucrânia, surgiram divisões dentro da Otan e em Washington sobre como impedir o Kremlin de uma nova escalada. Líderes aliados estão discutindo se é melhor manter a Rússia adivinhando o que desencadeará uma resposta militar maior ou estabelecer precisamente o que levaria a aliança a se envolver em um conflito.
Alguns formuladores de políticas da Otan na Europa temem que haja muitas mensagens públicas sobre o que a aliança não fará – enviar suas tropas para a Ucrânia, nem, no momento, enviar caças para atender aos pedidos de Kiev. Com a ameaça de armas nucleares e químicas russas pairando sobre os campos de batalha da Ucrânia, uma abordagem melhor, dizem eles, seria não descartar nenhuma possibilidade publicamente.
As apostas não poderiam ser maiores, com autoridades dos dois lados do debate concordando que uma resposta mal conduzida poderia levar a Otan e a Rússia a um conflito direto, com consequências calamitosas para o mundo. A discussão se estende tanto ao que fazer pela Ucrânia quanto à melhor forma de reforçar as defesas da Otan dentro de seu próprio território para impedir que a Rússia ataque.
“Estamos determinados a fazer tudo o que pudermos para apoiar a Ucrânia, mas temos a responsabilidade de garantir que a guerra não escale além da Ucrânia e se torne um conflito entre a Otan e a Rússia”, disse o secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, a repórteres na quarta-feira, resumindo o dilema.
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Quando questionado sobre o que a Otan faria se a Rússia usasse armas químicas na Ucrânia, Stoltenberg manteve sua resposta vaga – uma abordagem tradicional que foi usada por décadas para manter a ambiguidade estratégica sobre como as armas nucleares também seriam usadas.
“Qualquer uso de armas químicas mudaria totalmente a natureza do conflito e teria consequências de longo alcance”, disse ele.
Os críticos da forma como os EUA lidam com a dissuasão dizem que, ao ser tão claro sobre o que os EUA não farão pela Ucrânia, Washington está potencialmente encorajando o presidente russo, Vladimir Putin, a agir de forma mais agressiva do que faria.
“Não acho muito produtivo quando dizemos de vez em quando ‘não queremos a 3ª Guerra’ ou ‘não queremos conflito com a Rússia’”, disse Marko Mihkelson, chefe da Comissão de Assuntos do Parlamento da Estônia, que esteve em Washington na semana passada para fazer lobby por tropas e equipamentos adicionais para a ala leste da Otan. “Isso é sinal verde para os russos de que temos medo deles.”
Abordagem americana
Defensores da abordagem do governo Biden dizem que a Casa Branca ajudou a aplicar sanções sem precedentes contra a economia russa e está no meio de um esforço em larga escala para entregar armamento defensivo à Ucrânia.
E os líderes da Otan, reunidos em uma cúpula em Bruxelas na quinta-feira, anunciaram o aumento das tropas em seu flanco leste e prometeram aumentar sua assistência à Ucrânia em cibersegurança, além de proteção contra armas químicas, biológicas, radiológicas e nucleares.
“O presidente tem a responsabilidade de deixar claro que nosso objetivo é garantir o fim desta guerra”, disse um alto funcionário do governo Biden, falando sob condição de anonimato para discutir a disputa.
“Para isso, deixamos claro que não vamos tomar medidas que ampliem essa guerra, coloquem mais vidas em risco e possam levar a um conflito muito maior. Essa é uma abordagem responsável e centrada em salvar vidas e acabar com esse conflito o mais rápido possível”.
Fundamentalmente, há pouca diferença entre a Europa e o apetite de Washington pela guerra, disse o senador democrata Chris Murphy. Os EUA estão “muito cansados da guerra e sabem como é ter milhares de soldados morrendo em conflito, então era importante que o presidente deixasse claro o que ele fará e o que não fará”, disse Murphy. “Mas não acho que haja muita diferença em nossos resultados.”
Além disso, os elementos de dissuasão da Otan parecem estar funcionando. Não houve ataques russos contra os centros de logística em território da aliança militar que estão ajudando a organizar a entrega de ajuda militar à Ucrânia, embora a destruição do armamento possa avançar os objetivos do campo de batalha do Kremlin.
Nem, pelo menos por enquanto, houve ataques cibernéticos significativos contra nações da Otan que alguns formuladores de políticas temiam que pudessem seguir as sanções impostas à Rússia. Os líderes da aliança dizem que os ataques cibernéticos podem desencadear os tratados de defesa coletiva da Otan, mas não explicaram como.
Mas os céticos dizem que Biden deixou algumas portas abertas para Putin desde o início, como no início de dezembro, no momento em que as tropas russas estavam começando a crescer ao longo da fronteira com a Ucrânia e ele disse que “a ideia de que os Estados Unidos vão usar a força unilateralmente para confrontar a Rússia invadindo a Ucrânia não está na mesa agora”.
Mais recentemente, o governo americano recusou uma oferta polonesa para enviar caças MiG para os militares ucranianos, quando o porta-voz do Pentágono, John Kirby, declarou que a avaliação dos EUA era de que a Rússia veria isso como uma escalada. E algumas autoridades do Leste Europeu dizem que estão preocupadas com a possibilidade de que haja um atraso no reforço de tropas e equipamentos para nações vulneráveis da Otan.
Ao ficar em silêncio sobre questões como o envio de tropas, “você não está sinalizando que vai enviar tropas, está deixando uma incerteza na mente de seu adversário de que há essa chance de você enviar tropas, caso ele se arrisque na escalada”, disse François Heisbourg, consultor sênior para a Europa do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos e ex-assessor do Ministério da Defesa francês.
Os republicanos ecoaram as críticas. “É melhor que (os russos) se perguntem o que vamos fazer em vez de dizer a eles o que vamos fazer exatamente”, disse o senador Mitt Romney, de Utah. “Geralmente, a ambiguidade estratégica é o melhor caminho.”
Mensagens públicas
Na Otan, diplomatas europeus também levantaram preocupações sobre a forma como os EUA lidam com as mensagens públicas, disseram dois altos funcionários. O Reino Unido, em particular, tem se manifestado, junto com países do Leste Europeu.
Os diplomatas falaram sob condição de anonimato. “Eles estão dizendo que devemos parar de dizer abertamente, com antecedência, o que a Otan não fará”, disse um dos diplomatas. Biden não foi o único líder da Otan a tentar ser claro sobre os limites. “Não cederemos às exigências de uma zona de exclusão aérea”, disse o chanceler alemão, Olaf Scholz, ao Parlamento de seu país na quarta-feira. “A Otan não se tornará parte da guerra.”
Mas altos funcionários russos admitiram que não importa o que Biden e outros líderes possam ter delineado nos meses que antecederam o conflito, o Kremlin ainda estava surpreso com a força da resposta ocidental.
“Ninguém poderia imaginar que o Ocidente pudesse impor essas sanções. É só roubo”, disse o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, a estudantes do Instituto Estatal de Moscou de Relações Internacionais na quarta-feira.
O debate sobre como manter a pressão sobre a Rússia - enquanto tenta evitar a escalada da situação - continuou entre os líderes reunidos em Bruxelas. As nações do Leste Europeu que fazem fronteira com a Rússia — Polônia, Lituânia, Letônia e Estônia — vêm solicitando tropas e capacidades antiaéreas mais avançadas, que, segundo eles, deixariam claro para o Kremlin de que a Otan é capaz de respaldar suas advertências com poderio militar.
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