Opinião | É preciso levar um projeto de paz no Oriente Médio a sério após cessar-fogo em Gaza

O cessar-fogo em Gaza e a libertação dos reféns podem realmente marcar um novo início de caminho em direção a negociações entre israelenses e palestinos, em vez de somente mais uma trégua

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Por David Ignatius (The Washington Post)
Atualização:

O acordo de cessar-fogo e libertação de reféns de Gaza anunciado na quarta-feira, 15, é uma boa notícia, que esperançosamente marca o fim deste terrível conflito. Mas um discurso pronunciado nesta semana pelo secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, demonstra como será difícil fazer retomar o caminho na direção da paz israelo-palestina.

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Deixar um emprego nos permite dizer exatamente o que pensamos a respeito de problemas intratáveis. E foi isso que Blinken fez na terça-feira, em comentários extraordinariamente diretos sobre o Oriente Médio. Ele falou sobre obstáculos em vez de avanços. Se discursos sangrassem, este teria espalhado sangue para todo lado.

O conflito israelo-palestino é a pedra no sapato usada por todos os secretários de Estado que cobri, desde George Shultz, na década de 80. Todos trabalharam para criar uma “solução de dois Estados”, uma meta que parece gritantemente óbvia para todos, exceto para as partes diretamente envolvidas. Martin Indyk, duas vezes embaixador dos Estados Unidos em Israel e bem-aventurado entre os pacificadores, disse uma década atrás que o conflito tinha partido seu coração. Talvez tenha partido o de Blinken também.

Imagem do dia 16 mostra palestinos reunidos para receber comida proveniente de ajuda humanitária, na cidade de Deir al-Balah, no centro da Faixa de Gaza. Guerra causou a fome em todo o enclave Foto: Eyad Baba/AFP

“Gostaria de poder dizer que os líderes da região sempre colocam os interesses de seu povo à frente de seus próprios interesses. Eles não fizeram isso”, disse Blinken. Não se engane: essa mensagem foi endereçada ao primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu.

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Blinken começou seu discurso elencando pontos de discussão comuns sobre a política dos EUA na região: aprofundar parcerias, dissuadir agressões, diminuir conflitos. A música de elevador da diplomacia. E ele registrou fielmente os triunfos de Israel em seu longo arco de vingança pelo ataque de 7 de outubro de 2023. O Hezbollah foi “devastado”, o Irã ficou “em desvantagem”, o equilíbrio de poder na região está “mudando drasticamente”.

Mas então Blinken pendeu para uma discussão sobre uma guerra em Gaza, que o assombra e ao Departamento de Estado desde que o Hamas deu início ao pesadelo. E usou uma terminologia que ele geralmente evitava em público. Gaza trouxe “um sofrimento imensurável aos civis palestinos”, disse ele. “Quase toda a população perdeu algum ente querido. Quase toda a população está passando fome. Quase toda a população (…) foi deslocada.”

Blinken, cujo padrasto sobreviveu ao Holocausto, tem sido um amigo profundamente fiel a Israel, assim como seu chefe, o presidente Joe Biden. Mas foi possível sentir sua raiva em relação a Netanyahu, que por mais de um ano obstruiu os esforços de Washington em planejar um “dia seguinte” em Gaza capaz de aliviar a miséria no enclave.

“O governo de Israel tem minado sistematicamente a capacidade e a legitimidade da única alternativa viável ao Hamas: a Autoridade Palestina”, disse Blinken. Quanto a ajuda humanitária aos civis palestinos, “os esforços de Israel ficaram muito aquém de atender à escala colossal de necessidade em Gaza”.

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A frustração se transformou em pura raiva no relato de Blinken sobre as ações de Israel na Cisjordânia, que aprofundaram a tensão no território. Sob Netanyahu, disse Blinken, “Israel está expandindo assentamentos oficiais e nacionalizando terras num ritmo mais rápido do que em qualquer outro momento na última década, ao mesmo tempo que faz vista grossa para um crescimento sem precedentes em postos de controle ilegais”. Enquanto isso, ataques de colonos extremistas contra palestinos “atingiram níveis-recorde”.

Tenho observado essa invasão de Israel cada vez maior na Cisjordânia há 40 anos. De norte a sul, a terra que pacificadores imaginaram que um dia se tornaria um Estado palestino agora está fatiada e cercada de tantas maneiras por estradas, assentamentos e postos de controle israelenses que pouco tecido restou, a não ser trechos de território esfarrapado.

Imagem mostra militares israelenses em uma operação na Cisjordânia, no dia 10. Israel aumentou operações e ocupação na região desde o 7 de outubro de 2023 Foto: Jaafar Ashtiyeh/AFP

Blinken abordou o assunto sem rodeios: “Israel tem de decidir que tipo de relação pretende manter com os palestinos; que não pode ser uma ilusão de que os palestinos aceitarão ser um ‘não povo’, sem direitos nacionais”. Eu rezo para que os membros do novo governo Trump atentem para o alerta de Blinken: “Os israelenses têm de abandonar o mito de que são capazes de operar uma anexação de facto sem custos e consequências para a democracia de Israel, a posição do país e sua segurança”.

Pela primeira vez, Blinken detalhou publicamente o plano do “dia seguinte” para Gaza que ele começou a ventilar vários meses atrás. Seus termos são centrados na Autoridade Palestina, que Netanyahu tentou tanto minar. A Autoridade Palestina (AP) convidaria parceiros internacionais para ajudar a administrar o governo e a reconstrução em Gaza. Os EUA ajudariam a treinar e equipar uma força liderada pela AP, que poderia assumir gradualmente a segurança do enclave. A transição seria fundamentada por uma resolução das Nações Unidas e supervisionada por um alto funcionário da ONU.

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Não é apenas um plano sensato. É o único caminho plausível para o fim do morticínio e da destruição em Gaza. Netanyahu certamente entende isso. Mas bloqueou os esforços de Blinken por meses. Isso foi terrível para os palestinos, obviamente. E também transformou Gaza em uma ferida purulenta na fronteira de Israel.

Diplomatas no Oriente Médio sempre pedem que israelenses e palestinos façam “escolhas difíceis”. Mas depois de tantos meses, Blinken deve sentir que esteve batendo a cabeça contra uma parede de tijolos. “A realidade incontestável é que, até este ponto, ou as partes não tomaram essas decisões difíceis ou agiram de maneiras que colocaram um acordo e uma paz de longo prazo mais longe do alcance”, disse Blinken.

Pode-se argumentar que Blinken deveria ter feito esse discurso meses atrás. Ou que Biden deveria ter usado a enorme influência dos EUA para obrigar Israel a promover um desfecho estável em Gaza. Blinken admitiu que não acertou em todas as decisões sobre Gaza.

O cessar-fogo em Gaza e a libertação dos reféns podem realmente marcar um novo início de caminho em direção a negociações entre israelenses e palestinos, em vez de somente mais uma trégua. Os comentários lúcidos de Blinken são um presente para qualquer um que, após o horror de Gaza, queira levar a paz a sério. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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