A América Latina até deu sinais de que poderia surfar uma nova “onda rosa”, mas o que as urnas indicaram, eleição após eleição, era o descontentamento com os governos, não viradas ideológicas. No poder, líderes da esquerda se deparam com múltiplas crises — violência, imigração, disputas políticas fraticidas, desempenho econômico claudicante — e tem dificuldade em dar respostas satisfatórias. Desafio que deve ser acentuado com a ascensão da direita radical na potência ao norte, os Estados Unidos.
No México, Claudia Sheinbaum surfa na popularidade dos programas sociais, mas enfrenta a guerra deflagrada entre os carteis. Em Honduras, Xiomara Castro se vê no meio de um escândalo de corrupção. Na Colômbia, o plano de “paz total” de Gustavo Petro é ameaçado pela escalada da violência. No Brasil, Lula está às turras com o mercado. No Chile, os anseios por mudança foram frustrados, sem consenso para a nova Constituição, e Gabriel Boric amarga a popularidade em baixa.
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Isso sem falar da Venezuela, onde Nicolás Maduro enfrenta sanções renovadas por se perpetuar no poder com eleições marcadas por denúncias de fraude e repressão aos opositores. Ou de Cuba, onde a crise energética provoca apagões constantes.
“A distribuição de recursos que sustenta a legitimidade da esquerda obviamente se torna menos viável quando os recursos são escassos”, observa o analista boliviano Roberto Laserna, pesquisador do Centro de Estudos da Realidade Econômica e Social (Ceres).
“Há pouco espaço no repertório da esquerda para o investimento privado e a criação de riqueza com mercados integrados”, acrescenta, destacando que essas alternativas devem ganhar força com os sucessos do presidente argentino Javier Milei e o retorno de Donald Trump.

Com o republicano na Casa Branca, esses países entram na mira de um governo americano que dá mais atenção para América Latina. Mas sinaliza uma atitude negativa em relação a região, que vê como fonte de problemas, da imigração ao tráfico de drogas. Assim, crises domésticas somam-se às ameaças que vêm dos Estados Unidos.
A intimidação não é tática exclusiva para os governos de esquerda e a prova disso é o Panamá. O presidente José Raúl Mulino, um conservador, é pressionado a entregar o controle sobre o Canal do Panamá aos Estados Unidos. E Trump já disse que não descarta uma ação militar para conseguir o que quer.
Mas os líderes da direita, mais notadamente Javier Milei, esperam contar com a proximidade que tem com Donald Trump. E tem o motivo para acreditar que essa pode ser uma oportunidade de estreitar laços com os Estados Unidos: o secretário de Estado americano, Marcio Rubio.
Ele defende que os EUA devem se fazer mais presentes na América Latina para conter a influência da China e fez acenos públicos a Milei. O argentino, o primeiro líder internacional recebido por Trump após a eleição, teria papel importante nos planos de Rubio para criar uma espécie de coalizão conservadora na região.
Em audiência no Senado que confirmou sua nomeação, Rubio citou três países — todos com governos de direita — que na sua visão estão dispostos a cooperar com os Estados Unidos: Equador, República Dominicana e Argentina. E defendeu o estreitamento de laços.
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Em outros países da região, ainda que Donald Trump não atue diretamente apara apoiar os políticos conservadores, “seu governo pode fortalecer o clima político favorável à direita”, afirma Will Freeman, do núcleo de estudos da América Latina no Council on Foreign Relations (CFR).
Sem poder contar com ventos favoráveis, os governos de esquerda precisam descobrir como lidar com o republicano no poder ao mesmo tempo em que enfrentam seus desafios domésticos.
O analista político mexicano Francisco Jimenez, vê esquerda latino-americana “convulsionada”, depois que a maré rosa dos anos 2000 perdeu força. “Isso faz com que os Estados Unidos explorem as fragilidades desses países, que possuem uma cultura relativamente comum, mas acabam sendo dominados econômica, social e politicamente, e os pressione por meio de sanções”.

Violência no México
Na fronteira, o México é alvo de tarifas de 25% sobre os produtos que vende para os Estados Unidos. Como mostrou o Estadão, a dependência do mercado americano torna o país vulnerável às pressões econômicas.
Como aconteceu no primeiro governo Trump, o México pode se ver forçado a receber imigrantes impedidos de entrar nos EUA. Claudia Sheinbaum e seus auxiliares buscam marcar posição contrária à políticas do republicano, mas se mostram abertos a negociações, evitando embates diretos. E recebeu mais de 4 mil deportados na primeira semana de Trump.
“Trump vai tentar conter a imigração ao máximo”, destaca Francisco Jimenez. “Vai gastar dinheiro com o muro e usar o México como barreira, assim como fez antes. Isso pode desencadear mais violência e insegurança porque o país não está preparado para lidar com isso”.
A violência é citada nas pesquisas de opinião — as mesmas que dão aprovação de 80% para Claudia Sheinbaum — como a maior preocupação entre os mexicanos. O crime é o principal problema do país para 55% da população.
A insegurança pode não abalar a popularidade de Claudia Sheinbaum, impulsionada pelos benefícios sociais, mas se entranha nas instituições mexicanas, enquanto os carteis de Sinaloa e o Jalisco New Generation disputam mercados ilegais.
“Há um empoderamento do crime organizado, que está assumindo um controle econômico com o dinheiro das atividades criminosas — tráfico de drogas, de pessoas, roubos — e se torna cada vez mais poderoso”, aponta Jimenez.

Esse domínio, afirma, é também social e político. As últimas eleições mexicanas foram as mais violentas da história, com dezenas de candidatos assassinados. O crime organizado decidiu, na base da bala, quem poderia ser disputar as prefeituras. “Diante de tudo isso, temos um governo constitucional cada vez mais fraco e instável”.
Embora o índice nacional de homicídios tenha caído nos últimos anos, chegando a 23,3 mortes a cada 100 mil habitantes em 2023 (dado mais recente), nas cidades onde a disputa entre os carteis é deflagrada, a taxa de homicídios a cada 100 mil habitantes pode passar de 100.
Analistas destacam a impunidade — de criminosos e agentes do Estado que abusam de seus poderes — como um dos principais fatores para a violência mexicana. Nesse cenário de insegurança, é latente o drama dos desaparecidos: 116 mil pessoas haviam sumido do mapa até agosto do ano passado, de acordo com o registro nacional. Muitas foram mortas e enterradas em cemitérios clandestinos.
De olho no narcotráfico mexicano, que aponta como responsável pela entrada de drogas nos EUA, Donald Trump promete designar os carteis como organizações terroristas. A medida pode ter impacto direto para o turismo e, consequentemente, a economia do México.
Poderia ainda abrir a brecha para ações dos militares americanos no país, o que Claudia Sheinbaum rechaça, embora tenha dito que está disposta em colaborar no combate ao tráfico. “Eles podem atuar no território deles, de acordo com suas regulações e sua Constituição”, disse ele numa de suas conferências diárias para imprensa mexicana. “O que nós insistimos em defender e a nossa soberania e a nossa independência”.
‘Paz total’ ameaçada na Colômbia
O presidente da Colômbia, Gustavo Petro, por outro lado, partiu para o embate direto com Donald Trump. Recusou-se a receber voos com imigrantes deportados e até subiu o tom depois que o presidente americano anunciou tarifas e sanções, mas acabou chegando a um acordo com os Estados Unidos.
Internamente, Petro enfrenta o conflito entre rebeldes do Exército de Libertação Nacional (ELN) e dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em Catatumbo, região de fronteira com a Venezuela. A disputa pelo controle dos mercados ilegais numa região com vastas plantações de coca deixou dezenas de mortos e forçou o deslocamento de milhares de pessoas.
Diante da escalda da violência, o Gustavo Petro declarou emergência em Catatumbo, mobilizou tropas e suspendeu as negociações com o Exército de Libertação Nacional, que acusa de cometer crimes de guerra pela violência contra civis. “O ELN escolheu o caminho da guerra e guerra terá”, declarou há cerca de duas semanas.

Com o seu plano de paz cada vez mais distante, Petro admitiu o “fracasso” nas negociações. O ex-guerrilheiro chegou à presidência com a promessa de alcançar “paz total” em acordos simultâneos com os grupos armados dentro de alguns meses. Dois anos depois, o conflito está deflagrado.
As crises simultâneas deram combustível para oposição, fortalecida com o desembarque de partidos que fizeram parte da base governista. Para os críticos, Gustavo Petro teria sido leniente com os grupos armados, que se fortaleceram.
O analista Will Freeman pondera que não há evidências de que os governos de direita são mais eficientes no combate ao crime. E lembra que a situação na Colômbia não era muito diferente sob a presidência do conservador Iván Duque. Mas essa não necessariamente é a percepção dos eleitores.
“Há um descompasso retórico. Por algum motivo, os eleitores acreditam que a direita está melhor preparada para lidar com o crime. Há uma mensagem mais convincente sobre isso, mas, na prática, os resultados são variados”, afirma o analista, que vê o campo conservador como favorito para ganhar as eleições ano que vem na Colômbia.

Com popularidade em baixa, Boric tenta fazer sucessor no Chile
Da mesma forma, a esquerda pode sofrer revezes no Chile, que terá eleições ainda em 2025. Como o país não permite a reeleição, este será o último ano de Gabriel Boric no Palácio de La Moneda. Suas políticas progressistas esbarraram na falta de consenso para aprovar uma nova Constituição, demanda dos protestos que pavimentaram o caminho do líder do movimento estudantil para a presidência.
Essa agenda perdeu espaço entre os chilenos, alarmados com focos de violência no país que está entre os mais seguros da região. Cinco anos depois da onda de protestos, 70% considerava que o combate ao crime deveria ser prioridade. Isso representa um salto de 57 pontos percentuais, segundo pesquisa Cadem divulgada no fim do ano passado.
A pesquisa traz outro dado revelador sobre a mudança de ânimos. Na época dos protestos, 74% acreditava que o Chile sairia melhor da crise. Agora, 63% afirma que o país piorou.
Os chilenos rejeitaram tanto a Constituição progressista de Boric, como o texto que foi apresentado na sequência pela extrema direita liderada por José Antonio Kast e agora parecem se inclinar para a direita tradicional.
As sondagens dão vantagem para a conservadora Evelyn Matthei, prefeita de Providencia, região autônoma proxima a Santiago. A ex-ministra de Sebastián Piñera lidera com folga as pesquisas para eleição presidencial e tem avaliação positiva entre 45% dos chilenos.
Boric é aprovado por apenas 28%.
Esquerda na Bolívia chega dividida às eleições
A Bolívia também também vai às urnas este ano e com a esquerda dividida. Antigos aliados, Luis Arce e Evo Morales disputam a candidatura pelo campo da esquerda. Arce levou o Movimento ao Socialismo (MAS) de volta ao poder na primeira eleição depois que Morales foi forçado a renunciar e se exilou na Argentina (à época, governada pelos peronistas).
De volta à Bolívia, o líder cocalero insiste em disputar a presidência, mesmo impedido por decisão da Justiça, que estabeleceu o limite de dois mandatos presidenciais — Morales cumpriu três. Ele rompeu com Arce, que busca a reeleição. E chegou a acusar o afilhado político de tramar um autogolpe depois que os militares cercaram a Praça Murillo, sede do governo.
A crise se agravou com a denúncia contra Evo Morales por tráfico de uma menor de idade. Segundo o Ministério Público, ele teria se relacionado com uma adolescente de 15 anos com quem teve uma filha enquanto era presidente. Os pais da menina teriam consentido com a relação em troca de vantagens políticas.
Morales nega as acusações e alega ser vítima de uma perseguição jurídica orquestrada por Arce. Ameaçado de prisão, ele está em Cochabamba, seu reduto político, sob a proteção de apoiadores.

Enquanto o presidente e o ex-presidente protagonizam uma disputa fraticida, a economia boliviana afunda. O boom das commodities que garantiu a popularidade de Morales e projetou Arce, o seu ministro das finanças, ficou para trás. A produção de gás declinou, as reservas internacionais praticamente desapareceram e o combustível ficou escasso.
Quem sair vencedor da disputa terá muitos desafios pela frente, alerta o analista boliviano Roberto Laserna. “O discurso igualitário e nacionalista que caracteriza a esquerda tradicional dificilmente poderá se sustentar no país, já que os recursos disponíveis para distribuição se esgotaram”.
Nesse cenário, ele considera imperativo abrir a economia boliviana para dinamizar os investimentos e o crescimento. “Para isso, o discurso (da esquerda) é pouco convincente, mas o mais grave é que as instituições construídas com essa base ideológica se tornaram um obstáculo e desestimulam o setor privado”, afirma.