Em Nome, no Alasca, um grupo de inventores e ativistas continua ajudando a Ucrânia

Cidadãos desta remota cidade na costa oeste do Alaska fazem todo o possível para ajudar a Ucrânia na guerra contra a Rússia

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Por Zachariah Hughes (The Washington Post)
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NOME, Alasca — Ao longo da remota costa oeste do Alasca, pouco antes do delgado estreito que divide a América do Extremo Oriente Russo, Rolland Trowbridge exibe um dispositivo que ele mesmo projetou e montou: um banco de retângulos de metal soldados com ventiladores de resfriamento e uns fios azuis pendurados. “Basicamente, é um rádio de alta frequência”, afirma ele, andando de um lado para o outro em uma sala revestida de chumbo. “Isso tira os drones de combate.”

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O destino do dispositivo é as linhas de frente na Ucrânia. Seu propósito? Proteger as forças ucranianas de ataques de drones e ajudar a derrotar os russos.

Por décadas, esta cidade manteve relações intermitentes com o país que fica a apenas 257,5 quilômetros a oeste em linha reta. Desde que a guerra na Ucrânia começou, porém, esses laços foram possuídos pela raiva e o ativismo de um grupo de voluntários — inventores, profissionais e ativistas que ajudam a causa militar ucraniana de maneiras surpreendentes.

Em sua oficina em Nome, Rolland Trowbridge experimenta costurar camadas de tecido Kevlar para criar armaduras que os soldados ucranianos poderiam utilizar no combate às forças russas Foto: Zachariah Hughes/Washington Post

À medida que a guerra inicia seu quarto ano, eles não têm intenção de parar.

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Trowbridge aprimorou seu bloqueador de drones depois de ir para a Europa, no verão (Hemisfério Norte), para dirigir duas ambulâncias reformadas do Reino Unido até o leste da Ucrânia. Ele viajou, em parte, para ver como poderia ser útil. Depois de um mês por lá, encontrou uma resposta.

“Eu realmente posso ajudar obtendo coisas da China”, disse Trowbridge, apontando para uma pilha de US$ 53 mil em equipamentos que serão transformados em mais bloqueadores para proteger os ucranianos.

Mesmo para os padrões do Alasca, Nome é uma localidade remota — sem estradas conectando-a aos centros populacionais do Estado a centenas de quilômetros de distância. Os suprimentos para seus 3,6 mil residentes têm de ser transportados de avião ou barco durante os meses sem gelo marinho.

Nome fica na Península de Seward, no oeste do Alasca e é acessível apenas por avião ou barco, pelo menos nos meses em que não há gelo marinho espesso Foto: Zachariah Hughes/Washington Post

Como consequência, quem prospera em Nome são pessoas engenhosas, capazes de reutilizar materiais para atender às suas necessidades imediatas. Trowbridge opera uma oficina mecânica de automóveis instalada em um prédio irregular, que já foi o hospital da cidade. A sala onde ele testa seus bloqueadores de drones caseiros costumava ser a câmara do raio X, daí o chumbo nas paredes. Quando não há testes, ele usa o espaço para consertar pneus.

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Trowbridge não se dedicou aos esforços de ajuda à Ucrânia quando a guerra estourou em 24 de fevereiro de 2022. Ele acabou sugado pela paixão gravitacional de um outro habitante de Nome, Mark Hayward, um ex-médico do Exército que se mudou para a cidade com sua mulher em 2018, para trabalhar no hospital local.

Hayward viajou para a Ucrânia no início da guerra, após se candidatar para integrar tropas estrangeiras. Lá, ele encontrou “um país inteiro cheio de habitantes do Alasca improvisando de tudo, fazendo as coisas funcionarem”, conforme contou este mês o veterano, de 56 anos.

Mark Hayward, que lidera um pequeno grupo de residentes de Nome que tentam ajudar a causa ucraniana, mostra um drone de ataque que trouxe de sua visita mais recente a Kiev Foto: Zachariah Hughes/Washington Post

Ele passou alguns meses na Ucrânia naquela viagem, ajudando a treinar soldados da linha de frente sobre a utilização dos lançadores de mísseis Javelin para destruir tanques e solucionando problemas para o complicado sistema de energia da plataforma, que envolvia montar baterias de motocicleta de 12 volts.

Ajuda

Quando voltou para o Alasca, Hayward montou uma espécie de centro de comando para esforços improvisados de ajuda. Ele convenceu qualquer indivíduo simpático a apoiar a causa ucraniana com dinheiro, habilidades especializadas e trabalho — oferecendo o que pudesse.

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“Sempre que alguém demonstra algum interesse, nós pensamos: ‘Bem, o que você faz? Você conserta carros? OK, talvez você consiga consertar uma ambulância?’”, explicou Hayward, enquanto pegava um cheeseburger duplo no Polar Cafe, em Nome, que tem vista para o Mar de Bering congelado.

Atualmente, Hayward coordena vários projetos de ajuda militar e civil, geralmente alistando colegas em Nome.

Um dentista local, por exemplo, está ajudando a descobrir como transformar uma van a diesel em uma clínica odontológica móvel, para tratar os dentes dos soldados na linha de frente. Um jantar de arrecadação de fundos que ofereceu panquecas no salão da associação Veteranos de Guerras no Exterior em Nome levantou milhares de dólares para financiar uma ambulância que Hayward comprou na Polônia, carregou com insumos médicos e levou para a Ucrânia.

Durante uma viagem à Ucrânia em 2024, Mark Hayward repinta uma ambulância que ele levou para a linha de frente Foto: Mark Hayward/Washington Post

“O que é isso?”, pergunta a garçonete do café, passando pela mesa.

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“Um bloqueador de drones”, responde Hayward, segurando um de seus protótipos. Ele levou o equipamento para o almoço para conferir com o cara que comanda a operação local da UPS — de uma mesa dobrável no café — qual seria a melhor forma de embalá-lo para enviar para a Ucrânia.

O dispositivo cria efetivamente um escudo, disparando sinais de rádio em um enorme espectro que bloqueia os sinais que direcionam drones a atacar um alvo. Essa versão “caseira” custa cerca de US$ 2 mil. Um bloqueador comercial semelhante seria cerca de um quinto mais potente e muito mais caro, de acordo com Trowbridge.

Ele e Hayward também começaram a fazer experiências com coletes à prova de balas. Trowbridge usou sua máquina de costura de velas para unir camadas de tecido de kevlar. Quando a dupla disparou à queima-roupa contra o material um revólver magnum 44, sua fibra se mostrou mais protetora do que eles esperavam. O único dano deixado pelo projétil foi uma buraquinho preto no feixe de kevlar bege.

Cartuchos de munições usados ​​repintados por um artista ucraniano de 16 anos que sobreviveu à ocupação russa e à libertação de Kherson estão dispostos na mesa de Mark Hayward em seu escritório em Nome, Alaska  Foto: Zachariah Hughes/Washington Post

Apoiar a Ucrânia tornou-se algo profundamente pessoal. Hayward diz que sacou tudo o que tinha nas contas em que guardava sua aposentadoria, vendeu a maioria de suas armas de fogo pessoais e usou grandes fatias de seu salário. Ele estima que gastou US$ 180 mil de seu próprio bolso, com outros US$ 80 mil em doações passando por suas mãos, grande parte arrecadada de vizinhos, amigos e parentes.

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O dinheiro financiou kits de primeiros-socorros, veículos, materiais de arte para terapia de refugiados, geradores e uma miscelânea de itens num esforço de guerra improvisado com boa vontade e fita adesiva. Isso representou outra ruptura nos laços que Nome tinha com sua vizinha estrangeira mais próxima.

Papel de Nome

Durante a 2.ª Guerra, quando os Estados Unidos e a União Soviética foram aliados, a cidade desempenhou um papel fundamental no programa de empréstimos e arrendamentos do Exército dos EUA. Cerca de 8 mil aviões voaram até aqui para serem entregues a pilotos soviéticos e atravessarem a Sibéria até a Frente Oriental.

Na época, a fronteira entre o Extremo Oriente Russo e o território americano ainda era relativamente porosa. Famílias indígenas com parentes em ambos os lados do Estreito de Bering iam e vinham ocasionalmente. Caçadores de subsistência sobreviviam dos mesmos rebanhos de mamíferos marinhos: focas, morsas, baleias-da-groenlândia.

Essa viagem terminou quando a “cortina de gelo” caiu, em 1948, afastando parentes por décadas. Somente no fim dos anos 80 a cortina começou a ser levantada, com intercâmbios diplomáticos e culturais como o “Voo da Amizade”, em 1988, entre Nome e Provideniia, na Rússia. Uma companhia aérea local eventualmente ofereceu rotas regulares entre as duas localidades.

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O presidente da Rússia, Vladimir Putin, discursa durante uma reunião do Serviço de Segurança Federal, em Moscou, Rússia  Foto: Alexander Kazakov/AP

Vera Metcalf, de etnia iúpique da Sibéria, foi criada a poucas dezenas de milhas náuticas da Península de Chukchi, na Ilha de St. Lawrence. Ela viajou para Provideniia em 1991, quando seu filho fazia parte de um grupo de escoteiros que se reunia com os Jovens Pioneiros da Rússia.

“Fiquei na casa de uma mulher mais velha (…) e ela cuidou bem de nós”, disse Metcalf, de 73 anos, diretora da Comissão Esquimó Morsa. “Eles se lembravam de algumas das músicas que costumávamos cantar.”

Congelamento das relações

Nos últimos 15 anos, porém, as relações congelaram novamente. O último Voo da Amizade ocorreu em 2013. No ano seguinte, a Rússia anexou ilegalmente a Crimeia. Então veio sua invasão total à Ucrânia.

Até aqui, estima Hayward, dezenas de habitantes de Nome se uniram para ajudar os oprimidos naquele conflito, seja com trabalho voluntário, oferecendo suprimentos ou simplesmente comprando um prato de comida em eventos de arrecadação de fundos. Da casualidade ao comprometimento, a ajuda de Nome “é transversal, vem de todos os setores”, diz ele: de equipes hospitalares a caçadores, dos caras da NAPA Auto Parts a mineradores de ouro, funcionários dos correios e do município.

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Para alguns em Nome, os riscos do conflito não são abstratos. Um deles é o pastor Scott Sobie, que é natural de Ohio, se casou com uma mulher ucraniana e se mudou para o vilarejo dela, na região de Zaporizhzhia, há 20 anos. O casal criou seis filhos por lá enquanto ele pregava para os ucranianos.

A família fugiu meses após o início da guerra, depois que soldados russos tomaram conta da área e detiveram autoridades, incluindo o prefeito da cidade vizinha. Sobie afirmou que o corpo do homem, mostrando sinais de tortura, só foi devolvido recentemente aos seus parentes.

Oito meses atrás, os Sobies vieram para Nome com objetivo de se reunir com um filho que já morava aqui. Em sua nova comunidade, o pastor de 46 anos deu um depoimento pessoal sobre a experiência de sua família ao escapar. No entanto, ele e sua mulher estão focados em reconstruir suas vidas e criar seus dois filhos mais novos num ambiente de aparente normalidade.

Mesmo que um cessar-fogo acabe com os combates no leste da Ucrânia, um acordo que deixe casas e terras de ucranianos nas mãos dos russos soará como uma traição para Sobie.

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“Qualquer tipo de acordo de paz que diga: ‘OK, apenas congelem as coisas onde elas estão agora’ — na mente do povo ucraniano, isso é apenas uma pausa que beneficia a Rússia”, disse ele. “Se não forem derrotados, eles farão isso de novo.”

Hayward pensa da mesma forma. Ele mencionou o apoio decrescente do Congresso e disse que está “tão furioso que não consigo nem pensar direito”, citando a submissão do governo Trump aos termos do presidente russo, Vladimir Putin, para o fim dos combates. É por isso que ele acredita que a próxima fase do conflito precisará de um grau ainda maior de financiamentos coletivos, engenhosidades e voluntariado de indivíduos comprometidos.

O presidente dos EUA, Donald Trump, e o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, no Salão Oval da Casa Branca em Washington, em 28 de fevereiro de 2025: bate-boca que azedou ainda mais a relação entre os dois líderes  Foto: Saul Loeb/AFP

“Pessoas com boa vontade são capazes de sustentar a Ucrânia em sua luta contra a Rússia mesmo se o governo dos EUA desistir e voltar para casa? A resposta curta é sim”, disse Hayward.

Ele e outros em Nome classificam a situação como uma iminente 3.ª Guerra Mundial, recorrendo a uma terminologia forjada na 2.ª — apaziguamentos, ditadores, abdicações morais. Não muito tempo atrás, Hayward e sua mulher estavam concluindo planos para sua aposentadoria no Novo México. Agora esses planos acabaram.

Hayward pega seu celular para mostrar uma lista de chats em grupo que reúne online voluntários de todo o mundo, todos abarrotados de mensagens sobre equipamentos que as forças ucranianas precisam e logísticas para transportá-los até lá. Em breve haverá uma nova carga de suprimentos para enviar. Ele já planeja sua próxima viagem. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO